Por VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO DO CORREIO CIDADANIA
Na noite do último 14 de julho, o pedreiro Amarildo de Souza, morador da Rocinha, foi detido pela Polícia Militar carioca para averiguações e não mais apareceu - fato conhecido da maioria da população, já amplamente divulgado, e lamentado, pela mídia, personalidades e movimentos sociais.
Desaparecido em uma cidade cartão-postal, pela exorbitância de sua beleza natural, eleita e construída nos últimos anos como o símbolo do país pujante, o pedreiro é neste momento um dos demonstrativos gritantes do reverso de uma ilusão, ou da farsa delineada em torno à cidade maravilhosa e à nação.
Em meio às notícias de seu desaparecimento, predominam nos veículos de comunicação de maior visibilidade as suspeitas, insinuações e também críticas a mais uma das inegáveis ações policiais truculentas, mais do que rotineiras em nossas cidades, especialmente contra as populações pobres e negras das periferias das grandes metrópoles – denotando a extensão e profundidade que atingiu a criminalização da pobreza, de norte a sul.
Desconfianças surgem também quanto à intrincada realidade e guerra de interesses envolvendo policiais, milícias e traficantes nas favelas cariocas, das quais Amarildo pode ter sido mais uma das vítimas.
Essas são avaliações, sem dúvida, cabíveis e verdadeiras, mas que não dão conta da realidade complexa que vive o país, hoje tão evidente pelo quadro de insurgência que se espraia por grande parte das maiores cidades. O momento exige ir além dos conceitos e ilações mais convencionais que, não é de hoje, vêm sendo diuturnamente insinuados, divulgados e reafirmados. Especialmente quando se tem em foco a capital carioca, aquela que, escolhida como vitrine do ‘Brasil que vai pra frente’, está paradoxalmente envolta no clima de maior efervescência social da nação, com o governador ilhado pela população em sua própria residência.
Nos últimos anos, a cidade do Rio de Janeiro esteve particularmente afinada ao modelo de desenvolvimento brasileiro, que aprofundou a lógica neoliberal a partir de negócios e parcerias entre o Estado e o grande capital, com privilégios escancarados ao capital financeiro, às empreiteiras e ao agronegócio, ao mesmo tempo em que reforçava o Estado Policial para o controle e enfrentamento de insatisfações populares.
As UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora – inseriram-se exemplarmente nesse contexto, promovendo uma visão e ocupação autoritária e excludente da cidade, vez que se utilizam da lógica militar para um limitado, artificial e, por que não dizer, enganoso apaziguamento, pois não são poucos os indícios a denunciarem o aumento do índice de desaparecimentos nas favelas pacificadas, tema que até hoje passou ao largo das preocupações de averiguação do governo fluminense. Um processo que segue paralelamente ao uso abusivo e inexplicado da Força Nacional de Segurança pelo governo federal, encaminhado sob medida para que possam seguir luminosos, e sem entraves, os negócios de Eikes Batista e companhia, sempre acompanhado das honrarias de Estado, e às expensas de minorias - como o demonstra a bárbara e recente situação a que foi exposto o Museu do Índio no Maracanã, provocando forte reação social, que parece começar a forçar um recuo do governador Sérgio Cabral.
A hora é, portanto, de colocar de fato os pingos nos is, o que significa passar adiante das corriqueiras avaliações superficiais e imediatas de conjuntura e do enunciado de medidas, as quais, ainda que necessárias (como a urgente desmilitarização das polícias), não são mais suficientes para se atingir a profundidade de reflexão e ação que o atual contexto histórico impõe. Nenhuma medida proposta poderá adquirir efetividade sem que se destrinchem e enunciem as origens da situação de penúria social que tem arrastado as populações de um país que não superou seu passado escravagista. Tarefa que, obviamente, não é e nem mesmo dá indícios de que venha a ser desempenhada pelos meios de comunicação oficiais, corporativos ou comerciais.
Ocorre, no entanto, que a realidade está a desmascarar as avaliações canhestras, ufanistas ou tendenciosas. Afinal, a economia pujante, que navegou a favor da maré alta para commodities agrícolas e minerais, desacelera a olhos vistos. A população, mais endividada, diante da iminência de menor crescimento econômico, de repiques inflacionários, da precariedade de serviços públicos, e incendiada pela faísca da tarifa zero nos transportes, começou a ocupar o espaço que sempre lhe foi negado pelas ruas do país e a desmentir a sua pretensa inclusão na categoria de uma classe média em ascensão. A farsa Eike, por sua vez, com a atual fuga dos capitais externos, não pode mais ser bancada pelo Estado. E, finalmente, está aí Amarildo, mais uma vez a comprovar a hipócrita e tantas vezes glorificada pacificação, por mídias e governos de plantão.
O embuste a que esteve, e ainda está, submetida a população, carioca e brasileira, começa a vir à tona de maneira flagrante. Os meios de comunicação, sejam noticiosos ou oficiais, deverão seguir, no mínimo, mais atentos às versões que têm tentado incutir na mente dos cidadãos que os acompanham.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.