Por Bernardo Pilotto*
Nos últimos dias, ganhou peso nas redes sociais uma polêmica acerca da vinda de 6.000 médicos cubanos para trabalhar no Brasil. Ao ler vários comentários, parecia que se estava de volta aos tempos da Guerra Fria: “os médicos vêm ao Brasil para doutrinar crianças”, “Cuba é um país comunista e o Brasil é contra esta ideologia” e assim por diante. Gostaria de apontar algumas questões visando limpar o meio-de-campo do debate.
Esta não é a primeira vez que trabalhadores de outros países vêm ao Brasil para ocupar postos de trabalho. Em muitos estados brasileiros, há bolivianos, haitianos e imigrantes de outros países, normalmente ocupando vagas com péssimas condições de trabalho (algumas em condição análoga ao trabalho escravo). E assim como há imigrantes de países latino-americanos no Brasil, há milhares de brasileiros em países da Europa, na Austrália e na América do Norte trabalhando como cozinheiros, garçons, babás, entre outros trabalhos de baixa remuneração. Muitas vezes, esses brasileiros têm formação de nível superior e se submetem a trabalhos de menor formação em troca do “privilégio” de morar no “primeiro mundo”.
A vinda dos médicos cubanos para trabalhar em cidades afastadas dos grandes centros, onde não há altos salários (em alguns locais, paga-se cerca de R$20 mil por 20 horas semanais de trabalho) que segurem os médicos, tem uma lógica parecida com o ponto acima descrito. Os cubanos vêm ao Brasil, para onde sobre empregos e falte trabalhadores. A diferença é que a mão-de-obra excedente em Cuba é de alta qualidade: são médicos formados em escolas que têm a saúde coletiva e preventiva como fundamento, nas quais o sistema de saúde brasileiro tem mais peso nos currículos do que em muitas escolas do Brasil. Em Cuba, há 6,39 médicos por mil habitantes, mais do que na Noruega (4,02), Suíça (4,07), EUA (2,67) e Brasil (1,49).
E, assim como os europeus, americanos e australianos argumentam que os brasileiros que vão pra lá podem “gostar da coisa” e querer ficar no país para trabalhar em outras ocupações, muitos agora argumentam que tais médicos podem vir ao Brasil para trabalhar em cidades afastadas e depois procurar trabalho em grandes centros urbanos.
A questão de fundo está em entender porque não há fixação de médicos em locais afastados dos grandes centros urbanos, onde a relação médicos por mil habitantes chega a 0,98 na região Norte e a 0,68 no interior do Maranhão. Em que pese o Ministério da Saúde ter escolhido a interiorização de médicos como sua pauta central, a política do governo federal é bastante contraditória em relação a isso. Medidas do MEC (Ministério da Educação), como a nacionalização do vestibular a partir do ENEM, atuam na contramão disso. Antes, a maior parte dos estudantes de medicina da UFAC (Universidade Federal do Acre) era originária deste estado. Agora, com o método SISU, esta proporção tende a se inverter, dificultando que os profissionais a ser formados pela UFAC trabalhem neste estado.
Vale registro também que, nestas longínquas cidades, a ausência não é só de médicos: em geral, faltam todos os profissionais da área de saúde, como enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, psicólogos, entre outros. E, para estas outras profissões, não há altos salários (a maior parte dos concursos para enfermeiros oferece salários entre R$1.500,00 e R$2.500,00). E a ausência de médicos também é muito influenciada pelo setor privado de saúde, que tem condições de pagar salários maiores para os médicos, mas apenas naquelas áreas que dão lucro (pesquisas direcionadas, atenção secundária, etc); mesmo assim, essa dinâmica influencia todo o mercado de trabalho médico.
A experiência recente tem mostrado que é preciso muito mais do que um salário alto para a fixação de profissionais em regiões afastadas. E, com certeza, a vinda de 6.000 médicos cubanos não vai resolver esta questão. Mas a gritaria criada por conta do anúncio da vinda desses médicos mostra o quanto ainda pensamos pequeno sobre as questões de saúde pública no Brasil. Para se contrapor aos cubanos, setores reacionários e privatistas da saúde passaram a posar de defensores do SUS, se colocando ineditamente preocupados com a qualidade da saúde brasileira.
O que a gritaria tenta esconder é o fato de Cuba, uma pequena ilha no caribe, pobre, que sofre com bloqueios econômicos há mais de 45 anos, que vive um regime político que se afasta da democracia, tem uma saúde pública de excelência e tem condições de exportar médicos para outros países. É semelhante ao que acontece a cada competição pan-americana ou olímpica, em que a pequena ilha supera as medalhas do “gigante” Brasil, com facilidade.
O que o sistema de saúde de Cuba mostra é que é a supremacia do sistema público que produz uma saúde de qualidade, com pesquisas de ponta, com vacinas avançadas, com a prevenção de doenças. Não são, como alguns tentam provar como verdade, o mercado e os grandes conglomerados capitalistas da saúde que fazem esta área avançar rumo ao atendimento das reais necessidades da maioria da população. Se Cuba consegue, imagina o que o Brasil poderia fazer se olhasse com mais atenção para seu sistema de saúde.
É esse ranço preconceituoso que dificulta a validação de diplomas nas universidades brasileiras. É um ranço irracional, que foge do bom senso, parecido com o ranço que faz a ideia democrática (e de bom senso) da paridade entre docentes, técnico-administrativos e estudantes nos Conselhos Superiores não ser implementada. Os Conselhos destas instituições, em geral espaços conservadores e tradicionalistas, não admitem que faculdades de medicina vindas de um sistema que se destaca pela coletividade e eficiência preventiva e terapêutica com uso racional de tecnologia e medicação, podem ser superiores ao modelo brasileiro, que é consumidor e desperdiçador de tecnologia, caro e focado na prática curativa e individual. Quando participei do Conselho Universitário da UFPR, como representante dos técnico-administrativos, entre 2009 e 2011, revalidava-se diplomas de todas as áreas, sem crises ou grandes debates. Mas os diplomas da área da medicina eram cercados de grande tabu.
Portanto, nada de achar que a saúde pública brasileira vai ser salva com a vinda desses médicos. Muitos menos ache que esses médicos vão acabar com a qualidade do sistema brasileiro. Essa é mais uma medida paliativa e contraditória do Ministério da Saúde e que tem um grande mérito: escancarar o quanto o sistema de saúde brasileiro, marcado por ser privatizado, curativo, médico-centrado, hospitalocêntrico e individual, está defasado e precisa ser revisto.
Bernardo Pilotto é sociólogo formado pela UFPR, mestrando em Saúde Coletiva na Unifesp e membro da coordenação do Setorial de Saúde do PSOL.