terça-feira, 14 de maio de 2013

Ministério Público denuncia violações no projeto do mineroduto Rio-Minas


Mineroduto fere direitos humanos, causa graves impactos ambientais e modifica as condições básicas de vida dos moradores, como o acesso à água potável, afirma a denúncia

Rogério Daflon, do Canal Ibase


A 167 quilômetros de Belo Horizonte, a cidade de Conceição do Mato Dentro é bem próxima à Região do Quadrilátero Ferrífero, localizando-se ao norte da área que se confunde com a história da atividade minero-metalúrgica. Nela, além de paisagens, picos, cachoeiras e surpreendentes formações rochosas, encontra-se um ecossistema formado por vegetação de cerrado, campo rupestre e manchas de florestas. A biodiversidade botânica impressiona. Esse quadrilátero também se destaca pela presença de grandes companhias do setor, como Vale do Rio Doce, Guerdal e Novelis. É nesse universo que trabalha uma considerável quantidade de engenheiros e geólogos formados, sobretudo, na Escola de Minas de Ouro Preto, fundada em 1846 pelo engenheiro mineral Claude Henri Gorceix, a pedido de Dom Pedro II. Conceição de Mato Dentro, com alguma descontinuidade, apresenta características do quadrilátero e dele sofre imensa influência. O ambiente desse belo município, contudo, se diferencia atualmente pela grande tensão vivida por boa parte de seu povo, atingido em cheio pelo Projeto Rio-Minas.

O megaempreendimento ali fere direitos humanos na avaliação do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública de Minas Gerais. Causa também graves impactos ambientais e modifica as condições básicas de vida dos moradores, como o acesso à água potável.

Não por acaso, como se verá adiante, a cidade de São João da Barra, no norte-fluminense do Rio de Janeiro, padece de dramas bem semelhantes. Antes de se explicar o porquê, no entanto, faz-se necessário humanizar essa história, esclarecendo o conceito de “atingido”. Extraindo-se apenas um pequeno trecho do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), pode-se dizer que se trata de uma definição “aplicável a indivíduos, famílias, grupos sociais e populações que sofrem complexo de mudança social, que envolve deslocamento compulsório de população e alterações na organização cultural, social, econômica e territorial”. Mas o que as famílias dessas duas cidades estão vivenciando vai muito além dessa diminuta explanação.


Investimentos ultrapassam US$ 5 bilhões

Tudo começou quando, em 2008, a Anglo American, com sede em Londres, criou a Anglo Ferrous Brazil como braço de negócios de minério de ferro no país, e adquiriu do grupo MMX, do empresário Eike Batista, a mina de Conceição do Mato Dentro. Com investimentos de US$ 5 bilhões, a empresa almeja extrair 26,5 milhões de toneladas anuais de minério de ferro por ano. Para escoar tamanha produção, foi construído um mineroduto de 525 km de extensão, que corta 32 municípios mineiros e fluminenses, e chega assim à cidade de São João da Barra, onde está sendo instalado o Porto do Açu, do empresário Eike Batista e no qual a própria Anglo tem 49% no terminal de minério de ferro. Com mestrado em geografia pela UFF, o engenheiro ambiental Eduardo Barcelos, da Associação dos Geógrafos Brasileiros, disponibilizou ao Observatório do Pré-Sal um mapa da situação.

Mapa do Projeto Rio-Minas até o Porto de Açu - Imagem: Eduardo Barcelos


“A mina de Conceição do Mato Dentro, o mineroduto e o Porto do Açu em São João da Barra integram um mesmo empreendimento, o Projeto Minas-Rio. Ocorre que, desde 2010, o Ministério Público Federal vem questionando a fragmentação do licenciamento. A mina é licenciada pelo órgão ambiental de Minas (Supram), o mineroduto pelo órgão federal (IBAMA) e o porto pelo órgão estadual do Rio (Inea)”, diz Barcelos, que vem presenciando violações de direitos humanos e socioambientais nos dois municípios.

Para refletir sobre essa situação, o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e o Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (Gesta/UFMG) reuniram este mês um grupo de famílias de Conceição do Mato Dentro com outro de São João da Barra, que vive as agruras da instalação do Porto do Açu, no Rio de Janeiro. O encontro entre eles – em Conceição do Mato Dentro – foi marcado pela emoção.

Representante dos pequenos agricultores de São João da Barra, no Rio, Noêmia Magalhães, de 66 anos, conta que há quatro anos vem resistindo aos pedidos da LLX, o braço logístico da EBX, para deixar sua casa. No encontro com os atingidos de Conceição do Mato Dentro, ela, após um dia inteiro de viagem, aconselhou as famílias da cidade mineira a resistirem e cobrarem seus direitos.

“Não entreguem suas casas. Façam registros em delegacias dos casos de violação”, disse ela na reunião no município mineiro.


Violações de direitos humanos

O engenheiro ambiental Eduardo Barcelos contextualiza o conselho de dona Noêmia. Ele informa que os casos de violação de direitos humanos em São João da Barra são vinculados à desapropriação de terras no quinto distrito do município fluminense. Esse processo, acentuou ele, deu-se por decreto em âmbito municipal e estadual.

“Foi uma decisão de governo. Esses dois decretos violaram o artigo 265 da constituição estadual, o que foi discutido pela Comissão de Direitos Humanos da Alerj. Nas desapropriações compulsórias, as famílias têm de ser notificadas previamente pelo do estado, e, além disso, precisam receber indenização prévia. Não foi o caso do quinto distrito. Foi tudo feito de forma açodada, a fim de dar conta do cronograma da obra. Assim, o empreendimento ficou acima das pessoas. Houve também danos ambientais. A obra fragmentou a maior faixa contínua de restinga do país, o que foi objeto de ação civil pública da Associação de Produtores Rurais e Imóveis de São João da Barra. E, com a abertura do canal de acesso ao estaleiro e construção do aterro hidráulico, as águas da Planície Goitacá foram salinizadas, tirando, assim, mais um direito fundamental, o do acesso à água. O dano foi constatado pelo laboratório de Ciências Ambientais da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf)”, explicou.

As histórias dos dois municípios são bem parecidas. Se em São João da Barra, como conta dona Noêmia, pesquisadores da Uenf e a proprietária de um terreno salinizado foram barrados por seguranças privados da LLX, em Conceição do Mato Dentro, Rita Teixeira tentou entrar no terreno onde sua família tem uma casa e foi impedida por seguranças privados da Anglo American.

“Essa estrada é centenária, e agora ninguém mais tem acesso, Não posso ver minha casa. Eles negociaram com uma das minhas irmãs, não levaram em conta outros herdeiros, causaram discórdia na família”, disse Rita, cujo terreno se localiza na comunidade de Mumbuca.

O ambiente de discórdia, às vezes, é superado por atitudes de grandeza. João Matozinho, um senhor que mora na localidade de Água Quente, entrou recentemente na lista da Anglo que reconhece cerca de 500 atingidos. Mesmo assim, ele não pensa em sua situação isoladamente. “Tem muito mais gente sofrendo”, disse ele.

Matozinho se emocionou ao ver os vizinhos desesperados com a falta d’água. Com a erosão causada pela mina da Anglo, o rio Passa Sete ficou inviável para quem bebia de sua água, abastecia a casa, nele lavava roupas e vasilhas. O Rio também deixou de ser utilizado como forma de lazer. Um sistema de abastecimento feito pela Anglo carece de manutenção. As pessoas em Água Quente estão com a sensação de abandono.

A antropóloga Andréa Zhouri, do Grupo Gesta, ficou chocada com o que viu. “Essas empresas vêm de países como a Inglaterra em que o cidadão é respeitado. Mas chegam aqui e cometem todo o tipo de desrespeito aos direitos humanos”, protestou.

Os problemas se avolumam em Conceição do Mato Dentro. Para a procuradora Silmara Goulart, do Ministério Público Federal (MPF), o órgão ambiental estadual (Superintendência Regional de Regularização Ambiental do Jequitinhonha) se omite quanto à fiscalização das mais de 300 condicionantes para o empreendimento no município. Alguns exemplos devidamente documentados do que apurou o MPF: “Foram noticiadas uma série de violações aos direitos humanos das populações atingidas, caracterizadas pela falta de informação e transparência nas ações do empreendedor; processos de negociações diferentes ou insuficientes para os atingidos; ausência de acompanhamento médico e psicossocial para as famílias atingidas, muitas das quais compostas de idosos e pessoas com deficiência; desconsideração das formas tradicionais de posse da terra e de produção como hortas, quintais, pomares e fabricação de quitandas; não cumprimento dos prazos acordados nas negociações e/ou desinformação geral sobre os encaminhamentos a esse respeito; problemas com interdição dos acessos; incômodos decorrentes da detonação de explosivos, transtornos decorrentes da diminuição e contaminação das águas; não consideração dos diferentes usos dos córregos e rios para o lazer, a separação de grupos familiares extensos e rompimento de redes de solidariedade comunitária, religiosa e de vizinhança fundamentais para a coesão social e, mesmo, para a subsistência do grupo (ajuda mútua, mutirões) etc”.

A afirmação da procuradora de que o órgão ambiental se omite levou o Observatório do Pré-Sal a fazer algumas perguntas à titular da Superintendência Regional de Regularização Ambiental de Minas (Supram-Jequitinhonha/MG), que não foram respondidas. A primeira delas é relativa ao relatório da empresa Diversus, cujo diagnóstico demonstrou a existência de um universo muito mais amplo de atingidos do que aquele contabilizado pela Anglo, chegando a mais de 1.500. Mesmo esse número seja questionado pelos movimentos sociais, diante da quantidade de problemas causados pela mineração em Conceição de Mato Dentro. A Supram cobra da diversus um cadastro de atingidos. Para a antropóloga Ana Flávia Santos, do grupo Gesta da UFMG, trata-se de um equívoco.

“Não se trata de fazer um cadastro das pessoas, mas, sim, de considerar territorialidades locais e especificidades socioculturais. Dessa forma, as coletividades ganham relevo e isso implica no reconhecimento de um número maior de pessoas. É a lógica do seu João Matozinho. Se o vizinho dele é realocado, ele também é impactado por perder sua rede de vizinhança. Não se pode tratar o espaço como algo abstrato. Esse foi o critério utilizado no Termo de Ajustamento de Conduta de Irapé (a instalação de uma usina hidrelétrica no Bacia do Jetiquinhonha), que criou jurisprudência para casos assim e virou paradigma oficial para o caso de Conceição do Mato Dentro. Isso virou condicionante do próprio licenciamento da mina”, analisou a antropóloga.

Outro questionamento levado à superintendente é quanto ao fato da Supram ter dado um licença prévia à mina de Anglo em Conceição de Mato Dentro sem conhecer o universo dos atingidos.

Por outro lado, a própria superintende já admitiu publicamente que o órgão não conta com uma estrutura para fiscalizar as mais de 300 condicionantes impostas pela própria Supram à Anglo. Esse número de condicionantes, ressalta Andrea Zhouri, é bem maior que o da Usina de Belo Monte, no Pará.

O licenciamento da mina também tem sido alvo de questionamento do MPF e da Defensoria Pública de Minas Gerais, já que a licença de instalação foi fragmentada em duas partes: fase 1 e fase 2. Não houve uma explicação da Supram para essa fragmentação.

O secretário municipal de meio ambiente de Conceição do Mato Dentro, Sandro Lage, afirmou que 70% das condicionantes não têm sido cumpridas. “Eles investiram na cidade, mas a cidade tem tido prejuízos maiores que os investimentos da Anglo. Nosso município, que tinha uma vocação turística, hoje tem suas pousadas todas ocupadas por funcionários da Anglo. São mais de oito mil funcionários da empresa instalados aqui, o que piorou o nosso défict habitacional. E há muitos descumprimentos no que tange à regularização fundiária. O modo de vida de muitas famílias foi comprometido”, disse.

Seu Zé Pepino, que sofre com a poluição dos córregos de seu terreno desde 2009, é um dos moradores de Conceição do Mato Dentro que questiona não só a atuação da Anglo, mas também o modelo de desenvolvimento do país. “Onde é que é que tá esse tal de lucro? Esse tal desenvolvimento? Até agora só serviu pra secar minha nascente. Me ofereceram outro sítio, com outro rio cortando, aí eu perguntei: mas e os outros? E os demais? Eu quero é que limpe o rio, que saiam das minhas terras, não quero sair de lá”, sentenciou.

Entre as duas cidades, o minerotudo também faz seus estragos. Maria das Graças Drumond Andrade mora a 230 quilômetros de Conceição do Mato Dentro no município de São Domingos da Prata. “O mineroduto fez um intenso processo de erosão no meu terreno, hoje com taludes de 30 metros. O IBAMA já deu ordem para o projeto Rio-Minas consertar o estrago, mas vizinhos passam pelos mesmos problemas e estão em estado de choque com a violência desse processo. Minas Gerais voltou ao período colonial sob a tutela do governo do estado”, contou.

A advogada Patrícia Generoso, dona de um sítio na cidade mineira, virou uma liderança entre os atingidos. Costuma usar uma blusa com uma afirmação que deveria ser lida por todos os governantes e cidadãos desse país: “Injustiça que se faz com um é injustiça que se faz com todos. Portanto, não percam de vista Conceição do Mato Dentro e São João da Barra.

Diante de tudo isso, a Anglo, convidada a participar da audiência pública no último dia 6, em Conceição do Mato Dentro, enviou funcionários que se limitaram a fazer anotações. Optou pelo silêncio.

Foto: Rogério Daflon/Ibase