Retiro carnavalesco de igreja gay proíbe “ficantes”, fofoca e álcool
Na gíria mundana se diz que os gays “saem do armário”, mas no altar improvisado em um sítio na Zona Oeste do Rio lê-se “Sai da tua tenda” em letras amarelas sobre um cetim azul – as mesmas cores da Escola de Samba Unidos da Tijuca, que desfilara a 40 quilômetros dali na noite anterior àquela segunda-feira de Carnaval. A expressão é uma referência ao texto do Gênesis em que Deus manda Abraão assumir seu destino de patriarca do povo judeu, mas serve de metáfora mais terrena para definir a igreja comandada por Marcos Gladstone e Fabio Inacio.
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“Nós estamos nos preparando para o casamento”, explica ao microfone Fabio Inacio, um pastor corpulento e carismático de 33 anos, olhos grandes, careca reluzente e sorriso debochado. Ao lado dele está o também pastor Gladstone, seu marido, um advogado de 37 anos, rosto rechonchudo e olhar tímido. Os filhos do casal, dois meninos, de 8 e 10 anos, brincam ali perto com outras crianças, indiferentes à pregação dos pais.
Mal passa das nove da manhã, mas o calor faz com que alguns dos mais de 300 fiéis que escutam os pastores se sequem com toalhinhas, enquanto outros se abanam. Nem todos conseguem lugar para sentar sob o galpão coberto de telhas de barro. Apesar disso, ninguém arreda pé do espaço que, durante os quatro dias do Carnaval, virou mais um templo da Igreja Cristã Contemporânea, a ICC, fundada por Gladstone.
“O batismo é um casamento, você é a noiva, e Jesus é o noivo. Para casar, o que você precisa é amá-lo!”, prega Inacio de forma exaltada. “Se você quer um amor de verdade”, condiciona, “fique de pé!” Um a um, os presentes vão se levantando. Uns choram. Outros tremem. Sessenta pessoas se declaram prontas para o “casamento”.
Todos os convidados pagaram 200 reais pelo pacote de quatro dias. São, na maioria, homens gays, com idades entre 25 e 40 anos. Também há no sítio pelo menos vinte crianças – filhos dos fiéis – e duas senhoras, mães de integrantes da igreja. Uma delas, que é da Igreja Universal do Reino de Deus, insiste em que se anote sua declaração: “Se não fosse a Contemporânea, não sei onde meu filho estaria hoje, noite de Carnaval.”
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Foi ali que o hoje pastor entrou pela primeira vez num bar, na rua Castro, a convite de um amigo. Com 23 anos, evangélico desde os 14, estava noivo – de uma moça. Mal acabara de entrar, seu olhar foi atraído para dois homens de mãos dadas. Adiante, dois rapazes se beijavam. “Meu Deus! Estou em Sodoma e em Gomorra”, pensou Gladstone, antes de se virar e sair correndo. Perturbado, ele caminhou sem rumo pelas ruas onde décadas antes o ativista Harvey Milk vencera batalhas em favor dos direitos dos homossexuais. As imagens do bar se misturavam aos fantasmas que tentava exorcizar desde a adolescência. Gladstone estava ali porque acreditara que nos Estados Unidos encontraria a “libertação”, mas o que aconteceu não foi exatamente o que tinha imaginado.
Seis meses antes, no Rio, ele estava numa igreja do reteté, como os evangélicos pentecostais chamam as celebrações mais fervorosas. Nelas, “o fogo desce, o louvor sobe, o povo roda, sapateia, fala em línguas e profetiza”, segundo explicaria um seguidor da Contemporânea durante o retiro de Carnaval. Uma pregadora se aproximou dele e lançou uma profecia: “Diz o Senhor: sei das tuas lutas e prometo fazer uma grande obra na tua vida. Te enviarei aos Estados Unidos e, lá, começarei a trabalhar em ti.”
Semanas depois, Gladstone conheceu o americano que o receberia na Califórnia, deu entrada no passaporte, comprou passagens e conseguiu visto de turista. Tudo levou menos de seis meses – um milagre. Em São Francisco, depois do momento de desespero, sentado numa das ladeiras da cidade para admirar o mar, Gladstone afirma ter finalmente ouvido a voz de Deus: “Não adianta fugir do que você é.”
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No retiro da Contemporânea, ninguém reclamou das regras draconianas: nada de “ficantes”; nada de agarramento em público; nada de chamar de “bicha” ou afins; bebidas alcoólicas, nem pensar; nada de fofoca; sunga e biquíni, só na piscina; e ficar nu, só no boxe do chuveiro. Não fosse o fato de serem as mulheres a organizar o futebol, e os homens, o vôlei, o retiro seria igual aos dos evangélicos convencionais. Ou quase: um dos fiéis, recém-batizado na ICC, não deixou de expressar seu próximo desejo: “Agora, para ficar completo, só me falta o outro Salvador, o Malvino.”