A grandeza dos pequenos: os milhões esquecidos seguem confrontando estereótipos na luta pela sobrevivência
Uma resenha de Outubro (uma co-produção de Espanha, Venezuela e Peru), filme que trata das contradições da alma humana, publicada num dos números mais recentes da Revista Carta Capital me chamou a atenção mais pelo seu título do que pelo conteúdo: Grandeza dos Pequenos. Não sei se motivado pelo que se dizia acerca do filme dirigido pelos irmãos Daniel e Diego Vega, ou se pelos encontros que tive numa viagem recente ao coração do Paraná, me pus a pensar nos milhões de “pequenos” que sobrevivem esquecidos nas margens da sociedade brasileira. Esses milhões de seres humanos são os que foram completamente despojados de qualquer ganho da acumulação da riqueza gerada pelo Brasil desde que os conquistadores portugueses chegaram a Porto Seguro para iniciar o saque das riquezas por aqui existentes.
Uma pseudo-verdade propagandeada pelas elites e seus representantes no aparelho de Estado é a de que a miséria vem diminuindo no Brasil, graças a uma mistura de políticas que concentram o grosso da riqueza e distribuem migalhas na forma de políticas assistencialistas como a Bolsa Família e o Cheque Cidadão. Até pessoas sinceras, que ao longo do tempo dedicaram grande parte da sua vida em prol do estabelecimento de uma sociedade mais justa e democrática, agora parecem deslumbradas com o anúncio de que não só a miséria foi reduzida, mas também de como a fome foi praticamente eliminada, deixando de ser uma questão política central para ser apenas uma de natureza técnica. Tal deslumbre permanece mesmo quando se olha para a questão da qualidade dos serviços públicos, que até políticos da direita reconhecem ser catastrófica.
Mas, o que a maioria de nós normalmente esquece é que existe um contingente significativo de brasileiros que nem acesso a estes serviços precários possuem. Em muitos casos, a falta de um simples registro de nascimento é a causa deste descolamento da rede assistencial básica precarizada que o Estado brasileiro fornece aos pobres. É que dada a falta de registro, estas pessoas simplesmente não existem, ficando de fora de todos os direitos que o resto dos cidadãos possui. A ausência do registro de nascimento é reflexo de algo grave: a persistência de bolsões de miséria extrema onde os seus habitantes desconhecem uma necessidade básica para pleitearem o que o resto dos cidadãos toma com um direito inalienável.
Afora ter de arcar com os efeitos objetivos da sua inexistência legal, os “pequenos” ainda têm de aturar todo tipo de preconceito por parte não apenas das elites, mas também de segmentos pobres da população que lograram se inserir formal e legalmente nas engrenagens formais do Estado brasileiro. Se houver alguma dúvida acerca do que estou falando, basta pensar em quantas vezes logramos estar em contato com um “pequeno” onde nossa primeira reação não foi a de colocar a mão no bolso para proteger a carteira. Além disso, passado o primeiro temor, nossa tendência é não esperar nada que se assemelhe a um ato inteligente, ou que consiga formular uma conexão lógica com as coisas mais elevadas que a civilização humana já gerou.
Voltando ao Paraná, uma unidade da federação que projeta imagens modernas, muito em parte ao poderio de sua agricultura agro-exportadora, o que a maioria desconhece é que ali estão concentrados alguns dos piores valores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) encontrados no Brasil. O interessante é que é exatamente o modelo de produção agrícola lá existente o que explica porque existem tantas pessoas em condição de miséria extrema: a massa de “pequenos” foi sendo lentamente construída com o avanço da expropriação das terras indígenas e da expulsão dos camponeses de suas pequenas propriedades para dar espaço aos diferentes tipos de monocultura que hoje se espalham pelos campos paranaenses.
Assim, quem procurar direito entenderá porque, por detrás da imagem de modernidade e riqueza, o Paraná tem sido o palco de violentas disputas de terras e de um número incontável de mortes de índios e camponeses nas mãos da polícia e de jagunços. Entretanto, foi também ali que pude constatar mais uma vez que mesmo na pobreza extrema é possível encontrar indivíduos que confrontam os estereótipos, e não apenas lutam para sobreviver dignamente, mas também estão dispostos a generosamente compartilhar conhecimento. Um exemplo disto foi o encontro que mantive com uma vendedora de pinhões na beira da estrada que liga as cidade de Castro e Carambeí, num dia em que a temperatura de 12oC tinha seus efeitos acrescidos por um vento cortante que soprava inclemente. Explico: os pinhões eram oferecidos a granel ou ainda na pinha onde ficam armazenados antes de serem colhidos ou dispersos pela queda do alto dos pinheiros. Depois de informar que levaria os pinhões nas duas formas oferecidas, veio o agradecimento em forma de oração, seguido pela observação, gentilmente doada, de que a compra da pinha também tinha um valor pedagógico para as crianças, pois estas saberiam de onde vinham aos pinhões.
Mal sabia aquela vendedora que certamente a maioria dos adultos brasileiros nunca viu de onde os pinhões vêm. O pior é que esta talvez seja a menor de nossas ignorâncias.