A agonia terminal do setor sucro-alcooleiro do norte fluminense e seus múltiplos custos sociais e ambientais
Marcos A. Pedlowski, publicado no número 203 da Revista Somos Assim
Em 2008, percorri mais de 8.000 km dentro dos estados de Goiás e Mato Grosso num estudo sobre a dinâmica da indústria da carne bovina no Brasil. Ainda que naquela viagem o objetivo fosse estudar o que estivesse por detrás da transformação do Brasil no maior exportador de carne vermelha do mundo, acabei tendo a chance de ver várias usinas de açúcar e álcool que estavam sendo implantadas na região centro-oeste, com um alto investimento de capitais por parte de multinacionais do setor de alimentos como a norte-americana Bunge e a francesa Louis Dreyfus Commodities.
A diferença entre as usinas que encontrei no centro-oeste e aquelas que me acostumei a ver na região norte fluminense foi gritante. As unidades que vi há 3 anos atrás pareciam ter entrado em funcionamento há pouco tempo. Além disso, os implementos agrícolas que apareciam funcionando nos cultivos de cana pareciam de última geração. Ao ler um pouco mais sobre o que estava acontecendo no setor sucro-alcooleiro nacional vi então que tudo aquilo refletia o investimento de bilhões de dólares no que estava se tornando na mais nova fronteira dos biocombustíveis no mundo. Desde então, a Bunge e a Shell formaram uma joint venture de 12 bilhões de dólares para produzir açúcar e álcool. A Shell, com este investimento, tornou-se a terceira grande petroleira a chegar ao mercado brasileiro de etanol, seguindo os passos da British Petroleum e da Petrobras.
Entretanto, as transformações que ocorrem na produção de açúcar e álcool não estão se resumindo apenas à implantação de novas usinas e ao uso de máquinas agrícolas de última geração, mas estão se estendendo aos cortadores de cana e aos municípios onde as usinas estão sendo instaladas. Se levarmos em conta o que noticiou o Jornal Valor Econômico de 27 de maio de 2011, a Bunge está implantando em seus canaviais um sistema diferente de gestão do trabalho dos cortadores de cana. Entre outros benefícios prometidos, a Bunge deverá estender aos cortadores de cana a participação nos lucros que já existe como política para todos os outros funcionários da companhia. Neste sentido, Pedro Parente, presidente da Bunge no Brasil, declarou ao Valor Econômico que não haveria razão para que o comportamento da empresa fosse diferente, já que os cortadores de cana também fazem parte da empresa. Naquela matéria foi também informado que a Bunge adaptou as carretas que ficam nos canaviais, para que essas pudessem funcionar como espécies de espaços de convivência para os trabalhadores. Para tanto, estas carretas foram equipadas com banheiros, áreas para alimentação e descanso, água gelada e tendas extensíveis. Além disso, a Bunge estaria também concedendo aos cortadores de cana outros benefícios, tais como planos de saúde e odontológico, além de seguro de vida.
Ainda que possamos dar um desconto ao que foi publicado pelo Valor Econômico, o fato é que o comportamento da Bunge não é gratuito, mas reflete uma crescente pressão nos mercados consumidores para que a expansão do mercado de biocombustíveis não se dê à custa do aumento da exploração dos trabalhadores dos países pobres onde está concentrada a produção. Neste sentido, as regras criadas pela União Européia para proibir a compra de álcool produzido com o uso de trabalho escravo são apenas um dos exemplos deste tipo de imposição.
Assim, se levarmos em conta as transformações em curso na estrutura da produção de açúcar e álcool em outras partes do Brasil, poderemos notar quão anacrônica e desconectada com a realidade é a gritaria que vem sendo promovida contra a decisão do Ministério Público Federal de proibir a moagem de cana queimada pelas usinas que ainda estão em funcionamento no município de Campos. O argumento de que não existe tecnologia para viabilizar o corte sem queima é rapidamente desmentida pelo que está ocorrendo nas áreas onde estão as usinas mais modernas e turbinadas com capital estrangeiro. A verdade é que o trem partiu da estação faz muito tempo, e os representantes do setor sucro-alcooleiro no norte fluminense parecem ter se resignado a continuar pedindo benesses e subsídios ao Estado como se fossem vitimas indefesas do destino, em vez de reconhecer sua própria culpa por não investir numa inevitável modernização das unidades produtivas e de suas práticas trabalhistas. Como resultado, não apenas vemos plantas industriais decadentes e equipamentos de colheita e transporte completamente sucateados, como por aqui também existem algumas das piores práticas trabalhistas vigentes no mundo. Tanto isto é verdade que nos últimos anos o nosso município se tornou um dos principais pólos de libertação de trabalhadores escravos do Brasil. De quebra, somos obrigados a conviver com práticas arcaicas que causam uma poluição atmosférica capaz de deixar enfermas centenas de pessoas, sejam elas trabalhadoras do setor ou não.
Finalmente, se a negativa de optar pela modernização e pela adoção de práticas ambiental e socialmente sustentáveis significasse apenas o fechamento das usinas que sobraram até poderíamos aceitar a persistência destas práticas de forma resignada. Como este não é o caso, é provável que ainda tenhamos de presenciar outras situações lamentáveis antes que a última usina feche definitivamente seus portões e chaminés.