segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Carta aberta a Demétrio Magnoli

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por Paulo Frederico Guilbaud.


Caro senhor Demétrio Magnoli, devo, antes de tudo, admitir que gosto, de tempos em tempos, do que o senhor escreve. Gostaria de parabenizá-lo principalmente pela sua coluna sobre o Eike Batista, em uma época (a segunda grande queda das ações do grupo dele na bolsa este ano) em que poucos jornalistas ousavam abordar o assunto. Deixo para registro inclusive que acho que a simples comparação entre a sua coluna (que abordava as relações suspeitas entre investimento privado e empréstimos públicos, via BNDES e Caixa) e a de Miriam Leitão (no mesmo jornal, no mesmo dia, observando que Eike “errara por ser um empresário muito ousado”), já daria por si só uma excelente aula de jornalismo.

Porém, deixe-me falar um pouco sobre quem eu sou. Sou um dos vândalos baderneiros que têm ido, quando possível, às manifestações. Digo quando possível, pois trabalho muito e nem sempre tenho a disponibilidade que na verdade eu desejaria para participar mais ativamente de um movimento que já está, queiramos ou não, e, principalmente, a despeito de erros e acertos, entre os mais importantes da história recente do país. Sou um pouco mais velho que a média etária dos participantes. Participei realmente “jovem e tolo”, por assim dizer, das manifestações da época do FHC, contra os vergonhosos e subfaturados leilões das empresas públicas (a mui justamente alcunhada “privataria tucana”). Naquela época, nós geralmente organizávamos para as mobilizações pessoas com as funções de segurança e contenção. Isso significa que havia um grupo encarregado de evitar que pessoas, por quaisquer motivos que fossem, partissem para a violência gratuita, contra pessoas e patrimônio, pois isso claramente descaracterizaria o movimento que se queria pacífico. Isso era bastante importante, pois normalmente as pessoas que iniciavam os conflitos eram, na realidade, agentes infiltrados com o objetivo criminalizar os movimentos sociais, colocá-los em descrédito junto à população e justificar a repressão que invariavelmente se seguia. Mas também tínhamos a função, é claro, de proteger os manifestantes quando a polícia partia para cima da manifestação, o que significou, em muitos casos, conflito físico, infelizmente (claro que sempre levávamos a pior). Isso era relativamente fácil de fazer nos anos 90, pois os atos eram de menores proporções (foi uma época de grande desmobilização), e os “frequentadores” dos atos eram em geral militantes de organizações tradicionais, o que significa que, para o bem e para o mal, eram mais organizados e disciplinados. As coisas hoje em dia têm sido um tanto diferentes…

Li a sua coluna da última quinta-feira (15.8.2013) falando dos Black Blocks. Achei-a desinformada. Apesar de não conhecer pessoalmente nenhum membro do grupo, sei, como qualquer um que vai às manifestações de hoje sabe, que os Black Blocks não são um grupo adepto do quebra-quebra, e muito menos da violência. Já vi inclusive, senhor Magnoli, Black Blocks se interporem entre vidraças de bancos e manifestantes com pedras para quebrá-las. Já vi várias vezes Black Blocks salvando gente que apenas estava ali para se manifestar, que não fizera absolutamente nada de errado, e iria apanhar covardemente da infame tropa de choque. Os Black Blocks ficam na linha de frente para as pessoas poderem fugir, quando a violência de verdade começa, e isso, invariavelmente, ocasiona conflitos entre eles e a polícia. Enfim, eles fazem contenção e segurança das manifestações.

Fico perplexo com essa mania que se difundiu entre os jornalistas de culpabilizarem um grupo, que tem estratégias e objetivos tão bem definidos, por tudo que tem dado de errado durante os protestos. Parece que ninguém se deu ao trabalho de pesquisar o que o grupo diz acerca de si mesmo, nem as notas que eles têm soltado em defesa própria diante dessas acusações (verificar o que a outra parte tem a dizer é apenas um detalhe, ao que parece, mas, seja dito a seu favor, você não é o único a falar muito e não saber nada sobre o grupo). As pessoas que iniciam as confusões são outras. Muitas vezes, agentes infiltrados, como as câmeras de celulares e filmadoras tão abundantes nos dias de hoje têm demonstrado. A tarefa de mentir para a população ficou bem mais complicada nessa era de smartphones e de internet wireless, não é mesmo? E como eu gosto sempre de dizer, o Dostoiévski foi preso e passou aquele perrengue todo na Rússia Czarista, no século XIX, por causa de um infiltrado. Infiltrado é igual ácaro, você pode não ver, mas eles estão por todo lugar. E estão aqui, no palácio Guanabara, na porta da casa do nosso ditador democraticamente eleito, na Alerj, na Câmara, onde quer que os manifestantes de verdade estejam.

Claro que não há apenas infiltrados iniciando as batalhas campais a que se tem assistido. São manifestações de rua, e grandes, não é possível botar uma catraca na porta da rua e triar as pessoas que vão participar. E também por serem grandes, e muito horizontalizadas, como se diz nos dias de hoje, o que significa menos organizadas e menos homogeneizadas (para o bem e para o mal), tornam o trabalho de contenção difícil ou até mesmo impossível. É verdade, há pessoas que já vão para as ruas com a intenção de iniciar conflitos, saquear lojas e etc.

As tuas previsões para o futuro também me pareceram bastante exageradas, senão histéricas mesmo, assim como as comparações às Brigadas Vermelhas e ao Baader-Meinhof, uma vez que os Black Blocks existem desde a década de 90 e em vários países, e até hoje nenhum membro em nenhum deles se tornou um terrorista homicida. O mundo mudou, Magnoli, e a sensibilidade das pessoas também mudou. O que parece não ter mudado é a petulância da classe dos dirigentes políticos, econômicos e gerenciais do país, que continuam teimando em ignorar as reivindicações legítimas que a sociedade tem tentado colocar na pauta. Exemplo mais ao meu alcance é a CPI dos ônibus do Rio de Janeiro, projeto natimorto pela escolha irresponsável de dois vereadores declaradamente contra as investigações da própria CPI para a presidência e a relatoria da mesma. O que o povo vandalizado em suas reivindicações deve fazer agora? Voltar para casa passivamente pensando “bem, foi legal tentar, pena que acabou”? Ou deve insistir na pressão, mesmo sendo atacado pela polícia em simplesmente todos os atos contra o governo? Sou adepto da segunda opção.

O que você e os demais gerentes e/ou dirigentes desse país deveriam fazer era uma reavaliação urgente sobre a perda de credibilidade de vocês todos frente à sociedade, ao invés de jogarem tudo nas costas do “boi de piranha” da vez. Não são só os políticos corruptos que estão sendo colocados em questão, e nem apenas a polícia homicida, que mata na favela e distribui sopapo em manifestante desde até onde eu tenho memória, mas também a imprensa comprometida com as grandes corporações. Esta última tem sido sistematicamente rechaçada dos atos, o que, ao contrário do que ela própria anda dizendo na mídia, não significa que ela está sendo impedida de trabalhar. A imprensa está sendo proibida de mentir. E é para mim sinal de amadurecimento do povo brasileiro não aceitar mais qualquer coisa da parte de um jornalismo parcial, partidário e interesseiro (sejam feitas as devidas ressalvas às honrosas exceções). A estratégia de criminalização de movimentos sociais, repito, legítimos, não está mais dando certo. Que tal, ao invés de inventar outra estratégia qualquer, passar a responder às demandas da população?



* Paulo Frederico Telles Ferreira Guilbaud, vulgo Paulo Fred, é velho conhecido. Enfim, veio transversar! Formado em Francês, na Faculdade de Letras da UFRJ, trabalha hoje como revisor e tradutor. Baderneiro e vândalo por convicção ideológica, sempre foi um sujeito atravessado, desviado, tresloucado, de boas travessias e inexoráveis atravessamentos. Esperamos que, transversal que é, venha trazer transversuras a nosso blogue.