terça-feira, 16 de outubro de 2012

Derrame de sal, o X do desastre ambiental - Entrevista: Dr. Carlos Rezende

Em entrevista exclusiva à equipe da Somos, o Professor Dr. Carlos Eduardo Rezende fala sobre os resultados da pesquisa e alerta para a gravidade da situação. Confira abaixo:



Somos: O que deu início a essa pesquisa?

Dr. Carlos Rezende: Nós fomos procurados pelo pessoal do 5° Distrito porque estava começando a brotar água onde nunca tinha brotado.

Somos: Uma elevação do lençol freático?


CR: Falaram que estava aparecendo água onde normalmente não tinha. Não só aparecendo água, mas que as plantas no entorno de onde essa água aparecia estavam morrendo. A primeira coisa que nós fizemos foi medir a condutividade, e a condutividade dessa água estava em torno de 4.400 microsiemens. Em síntese, 4.400 de condutividade é muito grande, é uma água salobra. Para se ter uma ideia, a água do mar tem em torno de 42.000 de condutividade, e essa estava com 10% desse total, o que daria uma água em torno de 4 a 5 de salinidade, por isso as plantas estavam morrendo. Então, de onde poderia estar vindo toda essa água salina? O pessoal está dragando aquela região e está deixando a areia aqui em cima do solo e a água que está associada a essa areia está escorrendo na direção de canais que alimentam o canal do Quitingute que vai dar no Lagamar, no Açu, no Farol e posteriormente no canal das Flechas.

Somos: Estivemos lá, são montanhas de areia.

CR: O escoamento dessa água está contaminando a superfície, mas, no entanto, o pessoal foi lá e fez uma coleta bem ampla em várias regiões de amostras de água e aproveitou para coletar em alguns poços de pessoas, de residências e, coincidentemente, também coletaram num local, num recipiente onde a Prefeitura Municipal de São João da Barra distribui água para o povo.

Somos: A caixa d’água?

CR: Na caixa d’água essa água estava com uma condutividade de 540 a 640 microsiemens de condutividade, que é uma água imprópria para consumo humano. Por exemplo, a nossa água fornecida pela Águas do Paraíba varia de 60 a 90 microsiemens, dependendo do período do ano, e uma água mineral pode variar de 45 a 145 microsiemens por centímetro.

Somos: E lá estava com 640...

CR: Sim, 640. Aí você me pergunta: qual o problema que isso pode gerar? Certamente, com uma água com elevado teor de sais você pode requisitar uma intensidade no seu sistema renal e, consequentemente, você pode ter alguma disfunção, desregular o seu sistema renal. Tanto é que, se você for numa estação de águas, aquelas águas sulforosas, você não pode beber muito. Se beber muito tem gente que tem desarranjo. Falam que limpa o organismo. Limpa porque as pessoas têm um excreto desarranjo intestinal, então dá aquela limpeza...

Somos: O excesso de sal pode causar mais problemas?

CR: A água para irrigação deve ter no máximo 300 microsiemens de condutividade, ou seja, se para a planta, para irrigação da planta, essa água já tem teor que é impróprio, para o consumo humano certamente ela é imprópria. Estamos dando mais um alerta para que esse processo seja não só estudado no que diz respeito à saúde humana, mas também na irrigação da lavoura daquela região porque, segundo um agricultor da região, as plantações de abacaxi, maxixe e quiabo já começam a apresentar sintomas de mortalidade com a irrigação dessa água, então, quer dizer que de alguma forma aquele sistema hídrico já começou a sofrer algum tipo de alteração e que merece um monitoramento mais acurado...

Somos: E a fauna?

CR: A fauna provavelmente vai sofrer também, porque, se você tem vários organismos, alguns sobrevivem, alguns possuem plasticidade que toleram uma amplitude relativamente grande de sal, outras não, elas são restritas à água doce, essas realmente poderão apresentar algum tipo de sintoma. Mas eu acho que o mais crítico ali no momento é a gente olhar essa questão da saúde da população que está se abastecendo dessa água que é fornecida pela prefeitura e também a da irrigação.

Somos: Essa água fornecida por um órgão público está colocando a saúde da população em risco?

CR: É, ou pelo menos deveria estar sendo monitorada, porque têm algumas coisas que a gente tem que ter certeza. Primeiro essa água seria imprópria para irrigação; segundo, ela está com uma condutividade muito acima de qualquer água mineral ou água de abastecimento humano. Então, a gente pode dizer que ela é imprópria para o consumo humano.

Somos: A população de lá é formada por pequenos agricultores que dependem dos animais que criam e das plantas, da mandioca, do abacaxi, do maxixe. Como eles vão sobreviver lá?

CR: Isso aí é um efeito em cascata.

Somos: Não tem como tirar o sal da terra?

CR: Não. Dessalinizar é um processo, na água é até possível, mas na terra eu desconheço.

Somos: Isso será cumulativo?

CR: Isso é cumulativo. Ainda mais numa região como a nossa, que possui baixa pluviosidade e intensidade eólica, então, isso aí acaba evaporando a água e deixando o sal na terra. Para se ter ideia, as águas do canal de drenagem dos bancos de areia que desembocam no canal do Quitingute têm uma condutividade de 14 a 17 mil, significa de 7 a 11 partes por mil de sal, que é uma água, que eu diria, estuarina.

Somos: Mais do que salobra?

CR: É mais um pouco do que salobra, ela está no estuário inferior, então, essa água aqui está entrando para o canal do Quitingute que vai chegar no Lagamar, vai chegar no Açu, no Farol e no canal das Flechas, que são utilizados para agricultura. É uma coisa que vai ter que ser monitorada.

Somos: E está afetando um sistema hídrico.

CR: Na realidade, esse sistema hídrico da baixada é extremamente complexo, porque ele é interconectado, a água acaba de alguma forma se comunicando. Com a desestruturação física daquela região começa a ter algumas alterações que ainda não são claramente definidas, que vão começando a aparecer agora.

Somos: Esse foi um sintoma?

CR: Esse foi um sintoma. E não havendo um acompanhamento, isso acaba sendo pior, porque, no final das contas, a gente já vai pegar o fato consumado. No momento isso ainda está acontecendo, a gente poderia ter algumas medidas mitigadoras, de forma que fizesse uma barreira de contenção para que essa água não escoasse para as regiões adjacentes das atividades deles.

Somos: Fazer um muro subterrâneo?

CR: Ou até superficial, até deles bombearem, fazerem piscinas. Não sei qual seria a solução de engenharia que eles dariam, mas fazer alguma área onde essa água ficaria represada, se tem como impermeabilizar, faria alguns bolsões, alguns piscinões.

Somos: Você viu o tamanho daquilo?

CR: Em alguns lugares não tivemos acesso, porque é área da empresa, então o pessoal não conseguiu entrar. Não deixaram entrar.

Somos: Vocês tiveram algum tipo de contato com a empresa?

CR: Ainda não. Na realidade nós fomos chamados pela comunidade. A comunidade percebeu esse problema e solicitou nossa colaboração.

Somos: Eu observei nas fotos que vocês fizeram os testes in loco, levaram o equipamento, fizeram o teste de condutividade lá. É difícil haver questionamento nas amostras, porque foi feito lá.

CR: A grosso modo você pode dizer que para cada tonelada de areia, na melhor das hipóteses, você estaria jogando meia tonelada de água, mas eu acho que a relação é mais um para um do que um para meio, só para ser conservador, então se você tiver o volume de areia dragada por dia, você pode calcular o volume de água. Isso, a empresa tem que fazer. Isso, o órgão ambiental tem que cobrar, porque o que está se mostrando aqui é que de alguma forma o sistema está sendo alterado, e essa água de condutividade elevada está atingindo regiões que eram só de água doce. Você tem plantas que são adaptadas àquela região ali, mas há uma determinada salinidade, se você aumenta demasiadamente o teor de sal, vai ter uma resposta. A resposta que está se vendo hoje é exatamente essa, a de que as plantações da região já começam a se mostrar deficientes na produção, e você tem mortalidade gramínea, também. Até o pasto acaba.

Somos: Numa escala de 1 a 10, num desastre ecológico você considera o quê?

CR: Numa escala de 1 a 10 a gente ficaria entre 5 e 6, no momento, porque a gente não tem a dimensão, mas numa escala de cor, se fosse do verde para o vermelho, o sinal amarelo ou laranja já seria acionado. Laranja já é uma sinalização de alerta.

Somos: O que aconteceu aqui não pode ser revertido?

CR: Não. Algumas questões já são irreversíveis. Certamente com o teor de sal que chegou ali, com a chuva pode escoar e não vai ser um problema tão grande, mas o problema é que você tá transferindo essa salinização para outras regiões, chegando ao canal das Flechas, pessoas que estão mais distantes vão ser impactadas também e não vão estar nem sabendo o porquê a princípio.

Somos: E o pessoal que está bebendo essa água está sendo impactado.

CR: É, aí são duas questões, uma questão de saúde pública, que também é ambiental, e a questão do desequilíbrio ecológico em função da mudança do regime hídrico da região.

Somos: Que vai afetar economicamente as populações da região.

CR: Com certeza.

Somos: A mandioca e o abacaxi sobrevivem a isso?

CR: O abacaxi, o agricultor já falou que está tendo problema, e no maxixe e no quiabo já se percebe alterações.

Somos: Eu tenho um filme onde um agricultor fala que o pássaro bacurau praticamente sumiu, aí mostra o pássaro já tonto, ele já no chão, caído. Ele deve estar de alguma forma bebendo essa água. E o Inea? Vocês procuraram o Inea?

CR: Não, porque na realidade nós fomos acionados por esse grupo e nós fomos numa de exatamente tentar colaborar, então, realmente, no momento nós não entramos em contato com qualquer órgão, nem com a empresa, nem com ninguém.

Somos: Então, seria o caso de a gente fazer um alerta para ver as providências.

CR: É, eu acho que sim, seria importante que o Inea...

Somos: Que não deve nem ter conhecimento disso.

CR: Não deve ter conhecimento.

Somos: Nem a empresa, não é?

CR: Talvez nem a empresa.

Somos: Eles não têm um laboratório capacitado para isso.

CR: Não, eles terceirizam tudo.

Somos: E são herméticos. Você não pôde nem entrar.

CR: Na realidade, eles são complicados, eles têm EBX, OGX, LLX, são vários ‘X’, às vezes, têm empresas contratadas fazendo a mesma coisa pela OGX e pela LLX.

Somos: Há muitos anos a região é vítima de agressões ecológicas. O Quitingute recebia uma carga enorme de vinhoto quando a indústria sucroalcooleira era pujante, a gente passava e via um esgoto de vinhoto, até que o problema ambiental passou a ser mais policiado, virou crime. Aí melhorou. Mas agora estão jogando sal, vai afetar, inclusive, a indústria agrocanavieira.

CR: Com certeza.

Somos: A região já tem pouca cana.

CR: A produtividade já é baixa para essa região aqui comparada com São Paulo, se você aumenta o teor de sal para uma planta que a princípio não é adaptada para esse tipo de coisa, certamente você vai ter mais uma possibilidade de declínio na produtividade por metro quadrado.

Somos: É, teria que ser resolvido primeiro o problema da população, a população está bebendo isso.

CR: Com certeza. Mas eu acho que as coisas têm que ser vistas simultaneamente, são dois problemas distintos, porque o outro também vai atingir a população de alguma forma, a economia do município é alicerçada, em boa parte, na cana.