Marcos Pedlowski, artigo originalmente publicado no site da Revista Somos Assim
Assistir à repetição das tragédias que acompanham toda estação chuvosa na região Serrana já é algo suficiente para me deixar bastante irritado. O fator que normalmente explica minha irritação é que embora sejam tragédias anunciadas, continuam sendo solenemente ignoradas pelos gestores de políticas públicas, independente do nível de governo que esteja envolvido. No entanto, a repetição mais recente do ciclo nefasto que combina chuvas pesadas, movimentações de solos e vegetação, e mortes dos habitantes das áreas mais atingidas teve uma novidade grotesca:a manifestação estapafúrdia da presidente Dilma Rousseff que, do aconchego de um hotel de luxo em Roma,acusou os moradores das áreas de risco de serem os principais responsáveis pelas desgraças que estavam se abatendo naquele momento sobre centenas de famílias na cidade de Petrópolis, ou seja, das quais eram vítimas. De quebra, a presidente Rousseff se apressou em livrar a cara do governador Sérgio Cabral, seu aliado de primeira hora, quando disse que as políticas de prevenção estavam em pleno funcionamento.
O fato é que, de um governante, o mínimo que se espera é que esteja sintonizado com as causas estruturais de problemas graves que afetam a vida da população que ele diz representar. No caso de Dilma Rousseff, ela tomou a correta decisão de se dirigir até a cidade gaúcha de Santa Maria para prestar solidariedade às famílias dos jovens que morreram asfixiados na Boate Kiss. Assim, fica evidente que a presidente é uma pessoa astuta e que acompanha de perto as catástrofes que eventualmente ocorrem no território do país do qual ela é a autoridade máxima. Isto torna ainda mais inaceitável sua declaração . A questão é que ninguém decide morar em áreas de risco por irresponsabilidade ou por tendência suicida;se milhões de brasileiros hoje se arriscam a ocupar áreas ecologicamente sensíveis é porque não lhes é dada a oportunidade de construir nas melhores áreas, já que estas estão sob controle férreo de especuladores de terra que exercem um domínio completo sobre o que consideram o filé mignon do mercado imobiliário.
Se voltarmos um pouco no tempo, poderemos lembrar que na década de 1980, imediatamente antes e depois da queda do regime militar de 1964, a discussão sobre a reforma da propriedade da terra não se restringia às áreas rurais, mas incluía também o solo urbano. Além disso, a discussão da reforma da terra urbana não se restringia apenas a democratizar o acesso, mas à dotação da infraestrutura necessária para ampliar a qualidade de vida dentro das cidades brasileiras, que haviam crescido exponencialmente em função da chamada modernização conservadora. E por mais de vinte anos, essa discussão foi levada à frente pelo Partido dos Trabalhadores (PT), um dos poucos partidos a ter em seus quadros intelectuais preocupados com o aprofundamento da democracia brasileira em algo muito básico, qual seja, o direito de viver bem e em segurança. Infelizmente, ao assumir o poder federal, o PT começou a se afastar paulatinamente da plataforma política que havia dado suporte ao seu próprio crescimento eleitoral. O abandono do PT da luta pela reforma da propriedade da terra (fosse ela rural ou urbana) é, talvez, uma das principais heranças malditas que o partido está deixando para as futuras gerações de brasileiros que herdarão cidades marcadas por uma forte segregação sócio-espacial, onde para os pobres continuará restando apenas as encostas e outras áreas rejeitadas pelos ricos.
Para agravar ainda mais essa situação vivemos sob a égide de dois mega eventos esportivos (a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos) que estão remodelando de forma autoritária a estrutura interna de várias capitais, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo, num processo que deverá aumentar o custo de vida e, consequentemente, ampliar o êxodo para cidades médias e pequenas que, aliás, já se encontram sob grave pressão em suas estruturas urbanas e ecossistemas naturais. Tal perspectiva é agravada pelo fato de que não existem, ou sequer estão em fase planejamento, as chamadas macropolíticas que nos permitam vislumbrar a implantação de estratégias de amenização para a segregação sócio-espacial que está na raiz das tragédias que estamos nos acostumando a viver anualmente no período das chuvas. Uma análise fria dos números de habitações construídas no estado do Rio de Janeiro para responder tangencialmente às consequências dos fortes eventos climáticos que ocorreram nos últimos anos mostra que, passados dois anos da tragédia que se abateu sobre a região serrana, nenhuma das mais de sete mil casas que foram planejadas foi construída. E, pior, da verba para o reassentamento de moradores de áreas de risco, o governo do estado do Rio de Janeiro só teria gasto 1,9% dos recursos previstos no orçamento.
Diante desse quadro, o que devemos fazer? Esperar que os governantes sejam repentinamente acometidos de bom senso e comecem a fazer o que a boa lógica manda, ou vamos passar a cobrar a adoção de estratégias de longo prazo, que sejam eficientes e democráticas? Uma coisa é certa, se nada for feito, a chance é de que vamos assistir ao estabelecimento de um cenário ainda mais catastrófico.