É mais, por exemplo, que toda a riqueza gerada em um ano pela economia da Dinamarca, um país rico. Com crédito farto e barato, essa nossa Dinamarca estatal manteve a economia rodando no momento em que os efeitos da crise internacional se instalavam por aqui. Em 2009, o produto interno bruto brasileiro teve retração de 0,3% — um soluço se comparado com o recuo de 3,4% do mundo desenvolvido. Se o BNDES ajudou a evitar problemas maiores na economia durante a crise, tudo certo, então?
Infelizmente, o raciocínio não se encerra na conclusão simplista. Os resultados financeiros mais recentes da estratégia adotada pelo banco revelam um quadro desolador para os brasileiros que são seus sócios anônimos — inclusive por meio do Fundo de Amparo ao Trabalhador, uma das fontes de dinheiro barato da instituição.
Em 25 de fevereiro, ao publicar seu balanço de 2012, o BNDES mostrou queda de 10% no lucro, para 8,2 bilhões de reais. Muito pior foi o retorno de seu braço de participações em empresas, o BNDESPar — nessa divisão, o banco teve perda de 93% no retorno financeiro, que caiu de 4,3 bilhões, em 2011, para 300 milhões de reais, no ano passado.
Ajuda do tesouro
O BNDES atual começou a tomar forma em 2007. Não por coincidência foi o ano de início da presidência de Luciano Coutinho, economista da ala dos chamados “desenvolvimentistas” — e um dos arquitetos, por exemplo, da reserva de mercado no setor de informática no governo Sarney, que manteve o acesso dos brasileiros à tecnologia restrito a produtos defasados e caros até que o mercado fosse aberto, no governo Collor.
Desde 2008, o “desenvolvimentismo” foi materializado pela forte injeção no BNDES de recursos do Tesouro Nacional. Nos últimos cinco anos, foram transferidos 330 bilhões de reais. É certo que a atuação do banco, reforçada pelo Tesouro, foi providencial para contrabalançar a estiagem de crédito. Assim, em plena crise, o BNDES pôs 63 bilhões de reais na atividade industrial (63% mais que no ano anterior). E que atividade industrial era essa?
Entre outras coisas, era a expansão do frigorífico JBS no exterior. O BNDES comprou 3,5 bilhões de reais em debêntures da companhia, posteriormente transformadas em ações, para financiar compras feitas pelo grupo nos Estados Unidos. E, assim, o despossuído contribuinte brasileiro virou coproprietário da maior produtora de carne bovina do mundo.
Do ponto de vista legal, não há impedimento para a operação. Mas, do ponto de vista de estratégia do país, a decisão mostra que o BNDES está fazendo o que não deveria. “O governo está escolhendo os setores que quer que cresçam — e, dentro desses setores, as empresas de sua preferência”, diz Márcio Garcia, professor do departamento de economia da PUC do Rio de Janeiro. “Com isso, o banco está assumindo o papel de escolher, que é justamente aquilo que os mercados sabem fazer melhor.”
O papel de um banco público de fomento, como o BNDES, é muito mais seminal do que o de fazer nascer a maior fábrica de celulose do planeta (a Eldorado, localizada em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul — aliás, também ela controlada pelo JBS). Esses bancos devem oferecer financiamento a setores-chave da economia para os quais eventualmente não haja crédito privado ou atuar como lanceiros das grandes guinadas na economia de um país.
O KfW, banco de desenvolvimento da Alemanha, foi criado em 1948 para atuar na reconstrução do país após a Segunda Guerra Mundial. Depois, nos anos 90, o banco foi igualmente crucial nos esforços de reunificação da Alemanha pós-queda do Muro de Berlim. A Coreia do Sul criou o Korea Development Bank em 1954. Na década seguinte, o KDB começou a injetar rios de dinheiro em grandes grupos empresariais do país.
O caso coreano costuma ser citado por quem defende a estratégia atual do BNDES. Mas, lá, estava em gestação a reforma completa da economia coreana, um país pobre na época. Grupos como Samsung, então do setor têxtil, só recebiam financiamento se o dinheiro fosse para projetos ligados a inovação, como a de eletrônica.
Essa estratégia, somada ao fortíssimo investimento em educação feito na mesma época, criou um dos países mais inovadores do mundo. Os coreanos gastam hoje 3,3% do PIB em inovação — mais que o triplo do Brasil. “Temos uma visão torta do que a Coreia fez no passado”, diz o economista Mansueto Almeida, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.
Um dos exemplos da estratégia duvidosa do BNDES é a tentativa de ungir um campeão nacional do leite. Em 2011, o BNDES aportou 700 milhões de reais na criação da LBR, uma das maiores produtoras de leite do país. A empresa, dona das marcas Parmalat, Poços de Caldas e Bom Gosto, entrou em apuros a ponto de tirar de linha um terço das marcas e fechar 11 das 31 fábricas.
Casos como o da LBR mostram como é grande a diferença entre ser “pró-mercado” — ou seja, a favor da livre concorrência, independentemente do potencial de cada um dos competidores — e “pró-empresa”. Ao apostar numa única empresa do setor lácteo, da qual detém uma fatia de 30%, o BNDES acreditava que reformaria um setor inteiro.
A realidade foi mais forte do que a utopia. Diz o economista Steven Horwitz, professor da Universidade Saint Lawrence, de Nova York: “Se um governo beneficia uma empresa, as concorrentes gastarão tempo e dinheiro com lobby para receber o mesmo benefício dado à eleita”.
Não é só dentro dos setores beneficiados pelo dinheiro farto e barato do BNDES que a competição fica fora de prumo. Também no próprio mercado de crédito a briga fica desigual. Cada empréstimo do banco estatal a uma grande empresa é, possivelmente, uma captação a menos no mercado de títulos. Mastodontes como Vale e Ambev, duas das empresas que mais receberam crédito do BNDES nos últimos anos, fizeram o que lhes cabia: foram atrás do dinheiro mais barato que pudessem encontrar.
Qual o efeito de empresas desse porte — com capacidade de acessar os mercados de capitais para financiar suas atividades — terem à mão dinheiro que deveria ser reservado para modernizar a economia brasileira? “A concorrência do mercado de capitais com o BNDES é direta e desigual”, diz um executivo do setor financeiro ouvido por EXAME. “Não dá para concorrer com um empréstimo subsidiado pelo governo.”
O governo deu sinais de que não será a ama de leite do BNDES para sempre. O secretário do Tesouro, Arno Augustin, já informou que os repasses neste ano serão menores que os 55 bilhões de reais de 2012. É o início de uma mudança nas cartas do jogo? O pano de fundo, pelo menos, não parece perto de ser revisto. Internamente, os executivos não admitem que o BNDES tenha elegido setores prioritários. Os recursos, argumentam, estão acessíveis a todo tipo de empresa e setor.
Basta um bom projeto para pleitear os financiamentos. Embora pareça um critério justo, é tudo que um banco de desenvolvimento não deveria fazer. Sérgio Lazzarini, professor da escola de negócios Insper, conduziu uma pesquisa que traçou paralelos entre os desembolsos do BNDES e seu impacto sobre a decisão de investimento das empresas. Conclusão: o que as empresas querem do BNDES é seu dinheiro barato, e não apoio a projetos inovadores.
Ou seja, elas continuam fazendo mais do mesmo, só que com financiamento público. Sendo assim, como estimular a inovação — um tema caro aos bancos de desenvolvimento mundo afora — se essa exigência não existe na hora de aprovar o crédito? “O dinheiro dos bancos de fomento tem de criar algo novo na economia”, diz Lazzarini.
O BNDES jamais emprestou tanto e nunca teve gama tão ampla de setores sob seu guarda-chuva. Repete-se a pergunta: onde está o problema? A economista Alice Amsden, professora do Massachusetts Institute of Technology, morta em 2012, enxergou a resposta. Após pesquisar diferentes bancos de fomento, entre eles o BNDES, ela concluiu: mais que um eventual investimento ruim, o maior pecado desses bancos é não enxergar seu verdadeiro papel — e, sem alvo claro, acabam atirando crédito para todo lado. Talvez seja a principal lição a ser assimilada pelo BNDES.