Por Jackslene Silva
Sônia. “Pau de arara? Choque elétrico? Pancadas? Chutes? Pode escolher”, insistia o cabo Anselmo, esperando que sua vítima fizesse a escolha. Depois de ter o corpo completamente despido e molhado, Sônia, a jovem militante pernambucana, teve o corpo enrolado por fios elétricos e recebeu choques nos ouvidos numa voltagem tão alta que chegou a inflamar sua garganta. O golpe a impediu de comer e beber durante dias. Mesmo assim, ela não parava de urinar e, ao pedir para usar o banheiro, foi conduzida a mais uma sessão de tortura com choques intermináveis.
Os golpes lhe causaram uma tensão neurológica incontrolável que fazia sentir os choques todo o tempo. “Tenho a impressão de que fiquei com cara de louca”, contou Sônia Arruda Beltrão, hoje arquiteta, ao lembrar a única vez em que teve companhia na cela. Quando uma nova detenta a viu ficou apavorada com a situação. Sônia avisava para a recém-chegada não deitar, sentar, nunca tocar o chão, as paredes e todo o resto. Sônia dava choque em tudo. Diante do estado perturbado em que Sônia se encontrava, a novata pediu aos gritos para trocar de cela.
O questionamento mais intrigante para a maioria das pessoas, quando se fala da ditadura militar é: por que estas pessoas foram torturadas? Mais: o que realmente aconteceu neste período? Como Sônia, dezenas de pessoas foram torturadas no Brasil, mas muitas não sobreviveram para responder às várias perguntas ainda hoje em aberto. Muitas foram sequestradas e, depois desapareceram. Mas muitas ainda vivem para contar o que viram e viveram no cárcere da ditadura pernambucana. Este foi o tema de meu trabalho de conclusão de curso.
Em uma dessas entrevistas, ouvi de Sônia: “Sentaram-me numa cadeira e me mandaram ficar com a coluna reta. Um soldado com um fuzil mediu minhas costas e, fazendo mira, tentava ver onde seria melhor para me dar um tiro. Eu acreditei, pensei que iria morrer”. Ela ainda chora só de recordar o episódio.
Lourdes. Em outro local do Recife, a voluntária da Juventude Operária Católica (JOC), Maria de Lourdes Silva, foi sequestrada dentro de seu apartamento simplesmente porque desenvolvia um trabalho de inclusão social com jovens prostitutas da cidade de Timbaúba, no interior pernambucano. Era uma espécie de porta-voz das trabalhadoras das fábricas da capital. Lourdes estava com três meses de gravidez quando foi presa. Nos quatro meses seguintes, recebeu choques pelo corpo inteiro e foi obrigada a engolir um remédio desconhecido. Só usava o banheiro quando era observada. Ela passou todo o período da prisão sem tomar banho, pois tinha medo de sofrer abuso sexual.
Lourdes temia por sua vida, preocupava-se com sua família, mas principalmente temia pela vida do filho que estava se desenvolvendo num ventre materno atormentado por choques, pancadas e gritos diários. As explosões nas ruas não lhe permitiam dormir; e como o bebê não mexia, pensou que ele pudesse ter morrido. Um certo dia, para sua surpresa, o bebê se mexeu, como se desejasse tranquilizar a mãe. “Foi impossível conter a emoção, chorei incontrolavelmente mesmo correndo o risco de ser agredida por isso”, lembra com os olhos marejados.
Maurílio. Abaixa a ditadura! Dizia a pichação feita às pressas nos murros das lojas, fábricas e, casas próximas ao centro do Recife. Maurílio Cruz era um jovem idealista. Começou a fazer coro aos protestos na capital pernambucana quando ativista que se dizia comunista no pátio da escola onde estudava. Este encontro fez Maurílio ganhar um nome secreto. Ivo. Era como era chamado pelos integrantes do Movimento Revolucionário Cristão (MCR). A partir deste dia, fez pichações e panfletagens em frente às fábricas e, especialmente, entregou cartas vindas de todas as partes do país com orientações sobre como os companheiros deviam agir para alcançar seus objetivos.
A opressão existente entre os que buscavam uma sobrevivência justa e sem exploração tornou a vida dos trabalhadores e militantes um tormento, sobretudo para a população de Recife, que tinham como no resto do país uma longa jornada de trabalho e recebiam cerca de 10% do valor total do produto final.
Tal fato causou a indignação em muitos militantes que se reuniram nas ruas e praças para orientar o povo a buscar as mudanças necessárias. As condições de trabalho brasileiras eram sub-humanas em todos os setores, e não eram raras as notícias de funcionários que perdiam membros por tétano causado pelo contato com objetos enferrujados ou que adoeciam com tuberculose, pneumonia, febre reumática entre outras doenças que se proliferavam no ambiente de trabalho devido à falta de prevenção ou tratamento das doenças, a má alimentação ou ausência da mesma no local de trabalho.
A população era orientada a entregar qualquer suspeito de atitude antipatriótica. A delação era feita para a rádio local. Maurílio fora entregue por vizinhos e, em questão de horas, estava na sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Depois do interrogatório, foi transferido para a Casa de Detenção do Recife, onde logo conheceu a solitária. A cela da tinha cerca de 80 centímetros quadrados e sem a passagem de ventilação o calor tornava-se insuportável ao fechar a porta. Com um buraco no canto da parede substituindo o vaso sanitário e o excesso de fezes deixado pelos presos anteriores, respirar tornou-se uma tarefa custosa. Depois de algumas horas, o corpo solicitava outra posição e Ivo só tinha duas opções: de pé, encostado nas paredes apenas surradas com pedregulhos e molhadas de urina, ou sentado sobre as fezes no chão. As horas se passaram e o cansaço o venceu, e Ivo terminou decidiu se sentar. Parte do rosto, braços e pernas foram cortados pelos pedregulhos.
Iberé. Iberé da Costa, militante do Partido Comunista do Brasil (PCB) conheceu Engenho Galiléia em 1964. Em visita aos engenhos encontrou Rogaciano, um camponês simples que ganhava a vida nos canaviais da região. O corte de cana rendia pouco aos trabalhadores que não conheciam o que era um banheiro em seu domicílio. Rogaciano convidou Iberé para dormir em sua casa de choupana, toda de palha, de três cômodos. Ali havia uma rede, uma pequena mesa com dois bancos, e três pedras que usava como fogão onde cozinhava sempre que voltava do canavial. A influência dos socialistas trouxe possibilidades de transformações na vida dos camponeses. Após denúncias realizadas pelas Ligas Camponesas, os espancamentos e assassinatos constantes realizados contra os agricultores da região reduziram, mas não terminaram. Fora aberta investigação e comprovada a veracidade dos fatos quando encontraram cabeças, dedos, pés, e ossadas inteiras dentro do açude do Engenho Serra. “Esses corpos nunca foram identificados nem seus assassinos foram descobertos ou punidos, os açudes, barragens e rios estão cheios de sangue de inocentes”, afirma Iberé, que morou nos engenhos por vários meses.
Teresa. A professora de Historia, Teresa Vilaça resolveu ajudar os camponeses porque o campo havia se tornado um ambiente de discussão e participação popular. A escolha lhe rendeu quatro anos nos porões da ditadura. Militantes de vários partidos e de vários estados vinham socorrer Pernambuco que havia atingido o nível máximo de absoluta miséria social.
As reuniões aconteciam à noite na zona canavieira, muitas vezes às escondidas e depois de longas caminhadas a pé no meio do mato. “Muitos morriam de fome ou assassinados por terem reagido aos desmandos dos senhores e seus capangas. Chegara a vez de buscar melhorias para as famílias que levavam seus parentes para enterrar em redes durante o dia e dormiam nas mesmas redes à noite”, defende a historiadora.
Toda interrogação na sede do DOPS gerava pânico nos militantes. Para Tereza, era mais que isso. Ela foi levada a uma sala e pode conhecer o rosto do temido torturador Luiz Miranda, que sempre era chamado quando o investigado não queria colaborar. “Ele olhou para mim e disse ‘eu sou Miranda e eu vou lhe torturar’. Em resposta eu disse ‘diz isso porque eu estou algemada’. Recebi a maior tapa na cara da minha vida, que deu início a muitas torturas”, recorda chorando.
Como historiadora, Tereza teve a oportunidade de saber que caminho a história do Brasil tomava quando dentro do presídio, o Instituto Bom Pastor, teve contato com as presas comuns, e soube que várias delas também eram camponesas presas por roubar para tentar alimentar seus filhos. Ou jovens que se prostituíram e eram expulsas de casa. “Lembro de uma jovem que foi presa por tentativa de assassinato dos três filhos, porque ela pulou no rio com os três filhos por não suportarem a fome e não terem a ajuda de ninguém. Estas eram as criminosas do Brasil”, lembra.
Gabriel. A forma desumana e avassaladora com que as desigualdades foram expostas contribuiu para a reflexão sobre o sentido real de tamanha indiferença social. E esta meditação reuniu mais jovens idealistas como Gabriel Veloso, que tinha apenas 27 anos quando, como membro ativo do Partido Comunista do Brasil (PCB), visitou as regiões usineiras do estado historicamente conhecidas como desenvolvido pelo fino açúcar, o “ouro branco”, que trouxe riqueza para alguns e fome para outros. A disparidade causou um choque de realidade no jovem idealista, pois não esperava encontrar o gado morto de sede na estrada, crianças pálidas de anemia ou inchadas de verminose, desnutridas e analfabetas com pais em semelhante situação. “Jamais pensei que alguém vivesse assim; queria que a vida daquelas pessoas fosse diferente”, comenta.
Em 20 de abril de 1964, Gabriel recebeu a visita de Selma, uma namorada que lhe trouxe um recado de um delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Ele disse que é melhor você se entregar.” Convencido de que Selma fora coagida e para evitar mais represálias, ele se dirigiu no mesmo dia à delegacia e foi conduzido a um setor de tortura chamado de Bunker para que falasse sobre sua atuação junto às Ligas Camponesas e, principalmente, revelar os nomes de quem participava e o que faziam. Foram seis dias de interrogatório até ser levado à Secretaria de Segurança Pública e depois conduzido à Casa de Detenção do Recife.
Em sua cela no segundo andar da prisão, Gabriel podia ver a Estação de Metrô do Recife e observar os detalhes de sua arquitetura como os pássaros em estilo barroco que mesmo com asas estavam presos à construção. Esta imagem gerava piadas de alguns presos. “Certa vez, um dos presos políticos disse em tom de ironia que só sairíamos daqui quando aqueles pássaros voassem. Os pássaros não precisaram voar e eu estou livre. O lamentável é que outros companheiros não tiveram a mesma sorte.”
Hoje as ex-presas e presos políticos e seus familiares pedem que as Comissões da Verdade tragam à sociedade a veracidade dos fatos ocorridos no período. Sabem que a Justiça brasileira inocentou a maioria dos torturadores do período. Enquanto isso, os relatos de Lourdes, Gabriel, Sônia, Iberé, Maurílio e Teresa Vilaça ajudam a revelar as verdades escondidas no período fora do eixo Rio-São Paulo, os epicentros da opressão.