terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A morte de Cícero Guedes e a permanente necessidade de um amplo processo de reforma agrária

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado originalmente no site da Revista Somos Assim


A perda de determinados indivíduos não fica restrita à sua família, que talvez seja quem menos perde pelo seu desaparecimento físico. Apesar de a morte ser algo que é parte constituinte do fato de se estar vivo, algumas vezes esta nos debilita tão fortemente que não pode ser tomada como etapa de um ciclo natural. Isto fica ainda mais evidente quando a morte resulta do extermínio encomendado com a finalidade de nos privar coletivamente de pessoas cuja importância extrapola a família e a comunidade mais imediata em que se inserem como seres sociais.

E é por isso que a execução de Cícero Guedes, trabalhador que vivia e produzia alimentos no Assentamento Zumbi dos Palmares, ao mesmo tempo em que cumpria um papel essencial de catalisador de iniciativas coletivas em prol do desenvolvimento econômico, social e ambiental dos assentamentos rurais criados a partir de 1998 no Norte Fluminense, ganha grande significado. Ex- cortador de cana que se libertou da escravidão a partir do seu engajamento na luta pela reforma agrária, Cícero não teve muita educação formal. À primeira vista, não seria dado como uma pessoa capaz de exercer a forte liderança que logrou realizar, mas a aparência de homem simples e de poucas palavras era apenas um aspecto de uma personalidade criativa, irrequieta e instigadora. Como tive a oportunidade de relatar a alguém que me perguntou sobre ele, o Cícero era uma pessoa que em inglês se adjetiva como sendo do “no nonsense”. Isto na prática significa que Cícero não se dava a perder tempo com pessoas que não traduziam suas ideias em atos práticos de transformação, que em seu caso alcançava até a forma com que produzia alimentos. Não é à toa que Cícero havia se transformado numa das figuras mais visíveis de um esforço que está se fazendo em prol da produção de alimentos saudáveis. Ao mesmo tempo, até por seu exemplo ativo, Cícero era um motivador nato que, cantando ou entoado gritos de guerra, era capaz de energizar quaisquer ambientes em que estivesse.

Entretanto, a maior perda que ocorrerá com a morte de Cícero será no plano da organização e da comercialização da produção do alimento que teimosamente brota da terra, graças ao esforço hercúleo de centenas de famílias que convivem com as ameaças do latifúndio e a indiferença de um governo federal que preferiu apostar no latifúndio agroexportador, em vez de realizar uma mudança estrutural na propriedade da terra no Brasil, condição essencial para que pudéssemos ter alguma chance de mudar os padrões históricos de desigualdade com que convivemos desde que os conquistadores portugueses aqui chegaram. O mais trágico é que a morte pelas mãos de assassinos de aluguel alcançou Cícero num momento em que seus esforços de articulação em prol de mecanismos coletivos de comercialização começavam a frutificar.

O maior risco que corremos agora é que o vácuo deixado pelo assassinato de Cícero contribua para o esfacelamento das iniciativas coletivas que ele, a duras penas, conseguiu articular com outras lideranças existentes nos diferentes assentamentos que existem no Norte Fluminense. A verdade é que, ao contrário dos sindicatos patronais que são custeados diretamente pelo Estado brasileiro, as organizações camponesas independentes que existem no Brasil vivem do sacrifício abnegado de lideranças voluntárias, que além de trabalharem de graça, ainda se tornam os alvos preferenciais dos inimigos da reforma agrária.

Felizmente, apesar da comoção e da tristeza que eu encontrei quando estive no velório de Cícero, a maioria dos presentes parecia entender que não lhe resta alternativa a não ser a de prosseguir a luta pela reforma agrária. Esta compreensão política é essencial, pois as tarefas que Cícero deixou por resolver continuarão carecendo do engajamento ativo de todos os que entendem a importância da reforma agrária. E aqui me parece importante notar que, apesar de todas as miragens colocadas para nos iludir, a questão da distribuição da propriedade da terra ainda ocupa um lugar chave na realidade brasileira, que continua sendo marcada por uma profunda desigualdade na distribuição da riqueza nacional.

O mais lamentável disto é que ao se retardar a implementação de mudanças estruturais, como a representada pela reforma agrária, o Brasil acaba caindo num perigoso terreno onde a certeza da impunidade contribui para o aumento da violência social. O mais preocupante disto é que, no caso da reforma agrária, há ainda o impacto que cedo ou tarde teremos na área da segurança alimentar, pois com o avanço do agronegócio há um aumento da hegemonia das monoculturas e um consequente retrocesso no cultivo de alimentos, realidade que já aparece nas estatísticas da balança comercial, aonde a importação de alimentos vem aumentando vertiginosamente.

Este entendimento conjuntural é que nos faz compreender o papel essencial que figuras como o Cícero cumprem nas nossas vidas. O interessante é que ao contemplar de forma objetiva e distanciada a relação entre o indivíduo e o coletivo é que percebo como ficamos infinitamente mais pobres com a morte de alguém que deu tanto de si para que todos nós pudéssemos simplesmente ter o que comer todos os dias.