terça-feira, 20 de novembro de 2012

O "Dia da Consciência Negra" e Florestan Fernandes



Num dia em que literalmente se celebra algo que se chama de "consciência negra", muito pouco é efetivamente feito para que possamos entender de forma crítica e informada as raízes do mito da democracia racial no Brasil. Isto se deve, entre outras coisas, a uma negação contínua de se relacionar o padrão particular de desenvolvimento do capitalismo no Brasil com a condição indigna e injusta que ainda vive a imensa maioria dos descendentes dos escravos africanos.

No campo da instituições universitárias, a falta de uma reflexão crítica sobre a efetiva realidade em que os cidadãos brasileiros de descendência africana vivem é algo embaraçoso. Afora a existência de segmentos minoritários que se ocupam de disseminar a versão americanizada de justiça racial que se aplica nas políticas oficiais, quase nada é feito para que possamos refletir sobre o que acontece todos os dias no cotidiano de milhões de brasileiros negros.

Diante desta verdadeira indigência intelectual não há como deixar de lembrar a obra do sociólogo marxista Florestan Fernandes que em 1964, ironicamente às vésperas do golpe militar, concluiu e fez publicar a obra "A Integração do Negro na Sociedade de Classes".  Esta obra que continua praticamente desconhecida da maioria dos universitários brasileiros deveria servir como uma leitura obrigatória a todos os que pleiteiam um título de ensino superior no Brasil. É que apesar do jeito caudaloso com Florestan Fernandes construía seus textos, a clareza de sua análise supera qualquer elementos estilístico.  

No meu caso em particular que tive a honra de escrever um capítulo sobre a influência de Florestan Fernandes na construção da escola de formação de quadros do MST, penso que chega a ser vergonhoso que os estudantes da UENF, em especial os de Ciências Sociais e Pedagogia, não tenham sequer uma vaga idéia do conteúdo desta obra.

Apenas como exemplo do que Florestan Fernandes apontou, reproduzo uma frase tirada do Capítulo III intitulado "Heteronomia Racial na Sociedade Classes":

"Tomando-se a rede de relações sociais como ela se apresenta em nossos dias, poderia parecer que a desigualdade econômica, social e política, existente entre o "negro" e o "branco", fosse fruto do preconceito de cor e da discriminação racial. A análise histórica-sociológica patenteia, porém, que esses mecanismos possuem outra função: a de manter a distância social e o padrão correspondente de isolamento sociocultural, conservados em bloco pela simples perpetuação indefinida de estruturas parciais arcaicas. Portanto, qualquer que venha a ser, posteriormente, a importância dinâmica do preconceito de cor e da discriminação racial, eles não criaram a realidade pungente que nos preocupa. Esta foi herdada como parte de nossas dificuldades em superar os padrões de relações raciais inerentes à ordem social escravocrata e senhorial. Graças a isso, ambos não visavam, desde o advento da Abolição, instituir privilégios econômicos, sociais e políticos para beneficiar a "raça branca". Tinham por função defender as barreiras que resguardavam, estrutural e dinamicamente, privilégios já estabelecidos e a própria posição do "branco" em face do "negro"..."


O mais trágico é que passados quase cinquenta anos da publicação desta obra, as estruturas arcaicas de que tratava Florestan Fernandes não foram rompidas. E, pior, foram estabelecidas estratégias que visavam criar uma miragem de que foram, enquanto a maioria negra da população continua tendo negada chances reais de viver dignamente e em segurança.