Uma fábrica de contaminação e mortes em Paulínia
Após 59 casos fatais, Procuradoria amplia lista de quem terá tratamento pago
Lino Rodrigues, enviado especial
Lino Rodrigues, enviado especial
Contratados pela Shell, trabalhadores atuam em área isolada devido à contaminação por pesticidas sem o uso de todos os equipamentos de proteção necessários Marcos Alves / O Globo
PAULÍNIA, São Paulo — A demora na decisão de uma batalha judicial, que se arrasta há mais de dez anos, envolvendo ex-trabalhadores de Shell e Basf e o Ministério Público do Trabalho (MPT) de Campinas, já deixou 59 mortos — dois no último fim de semana —, todos contaminados por substâncias cancerígenas na área onde trabalharam e funcionou a fábrica de agrotóxicos das duas empresas entre 1977 e 2002, no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, interior de São Paulo. Parecer técnico encomendado pela Promotoria de Justiça concluiu que houve "negligência, imperícia e imprudência" da Shell e das outras empresas que a sucederam na área no caso da contaminação da fábrica e dos terrenos vizinhos.
A briga trabalhista dos ex-empregados é para garantir um plano de saúde que cubra despesas médicas com as doenças que surgiram depois de anos de contato com produtos químicos para produção de agrotóxicos. Na quinta-feira, em reunião entre os representantes dos trabalhadores e das empresas, o MPT de Campinas conseguiu incluir mais 13 pessoas em uma lista de 772 que já haviam garantido o direito de cobrar dos ex-empregadores gastos com tratamento médico.
Em sentença de agosto de 2010, a 2 Vara de Trabalho de Paulínia determinou que a Shell e a Basf teriam de custear totalmente as despesas médicas, laboratoriais e hospitalares dos ex-funcionários e de seus parentes, além de terceirizados que prestaram serviços à fábrica. À época, as empresas também foram condenadas a pagar multa de R$ 622 milhões por danos à coletividade e R$ 64,5 mil de indenização a cada um dos cerca de 600 ex-trabalhadores e seus filhos. As empresas derrubaram a multa e recorrem do pagamento de despesas médicas no Tribunal Superior do Trabalho.
Filhos de trabalhadoras nasceram com sequelas
A história da contaminação dos trabalhadores e vizinhos da fábrica de pesticidas da Shell começou com a compra de uma área de 400 mil metros quadrados em 1974, no então bairro Poço Fundo. A escolha do local não foi aleatória: vista de cima, a área se parece com a concha que simboliza a empresa. A fábrica, apesar dos protestos contra a sua instalação, começou a funcionar em 1977, com 191 funcionários. Em 1992, foi vendida para a multinacional Cyanamid que, em 2000, repassou-a à Basf. Desde antes da primeira venda, a fábrica já colecionava denúncias de contaminação pelo forte odor no ar e na água, que causava mal-estar físicos, gástrico em funcionários e vizinhos.
— Eu tinha de encher a caixa d’água à noite para usar no outro dia por causa do forte cheiro de produto químico — diz Ciomara Rodrigues, dona de uma chácara ao lado da fábrica.
Ciomara, que vive desde 2002 em um hotel em Paulínia custeado pelas empresas, conviveu com a contaminação desde que a fábrica da Shell começou a operar. Foi na chácara, construída pelo pai, que passou a infância e onde nasceram os dois filhos que "tiveram muitos problemas de saúde desde o nascimento".
— O mais velho vomitava constantemente, tinha diarreia e lacrimejava muito. Mas ninguém desconfiava que a contaminação vinha da chaminé em frente ao portão da minha chácara. Afinal, a Shell é uma grande empresa e ainda tinha o slogan "Você conhece, você confia". Quem iria imaginar que ela faria isso com a gente? — indaga.
Desde 2003, quando deixou a chácara contra sua vontade, Ciomara sofre de depressão e contraiu várias doenças em função da contaminação. Exames indicam que ela foi contaminada por Aldrin e outros químicos produzidos pela Shell. O filho mais velho, de 34 anos, tem o baço aumentado, um dos sintomas de contaminação, e complicações.
Os nove anos na Shell (1979-1988) tiveram consequências trágicas na vida de Benedita Mary Andrade, ex-coordenadora de serviços gerais. Em 20 de abril de 1990, nasceu com paralisia cerebral seu filho Leonardo, hoje com 21 anos.
— Ele teve má-formação na quarta e quinta semanas devido a problemas de contaminação ambiental — conta Mary, que é professora de artes de uma escola em Campinas e briga na Justiça para receber ajuda da empresa para custear o tratamento de Leonardo.
— Não resolve (a indenização), mas vou poder pagar um convênio. Preciso garantir o futuro dele. Saber que o problema dele foi por causa do meu trabalho, é doloroso.
Apesar do número elevado de mortos e da interdição do local desde 2002, não há avisos de que a área ainda está contaminada. O trânsito pelos mais de 400 mil metros quadrados, que incluem a área da fábrica e das chácaras vizinhas, só poderia ser feito com uso de equipamentos e roupas especiais. Até os avisos colocados no início da interdição foram retirados. Durante dois dias em que o GLOBO esteve no local, carros e motos circulavam normalmente. Seguranças contratados pela Shell disseram que não receberam nenhuma orientação sobre os riscos de trabalhar em local com substâncias cancerígenas. Na quarta-feira, trabalhadores limpavam uma pequena lagoa em frente à fábrica sem usar todos os equipamentos de proteção.
Procurada, Basf não se pronuncia sobre o caso
O médico toxicologista Igor Vassialeiff, que tratou dos primeiros pacientes, observa que o grau de contaminação ainda existente não permitiria que pessoas sem proteção circulassem pela área. Segundo ele, a presença de pessoas com pouco ou sem nenhum equipamento mostra que o poder público está relaxando.
Consultado, o Ministério Público estadual, que assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) logo depois que foi confirmada a contaminação da área, em 2001, disse que já está na hora de rever o acordo firmado com as empresas. Segundo a procuradora de meio ambiente do MP de Paulínia, Kelli Altieri Arantes, embora as informações sejam de que há inspeções periodicamente, a ideia é fazer um balanço e atualizar alguns pontos do TAC que podem já não ser suficientes para recuperar a área contaminada. Disse também que o órgão vai investigar se realmente está havendo relaxamento na prevenção e alertas estabelecidos no acordo para assegurar o isolamento da área.
Em nota, a Shell disse que as medidas de recuperação ambiental do bairro Recanto dos Pássaros acontecem há mais de dez anos e prosseguem dentro dos prazos acertados com as autoridades. Sobre os seguranças que estão no local, afirmou que eles não "precisam de vestimentas, máscaras ou qualquer outro tipo de proteção especial, uma vez que a baixa contaminação existente está restrita ao lençol freático". Sobre trabalhadores que atuam em obras de "remediação", diz que são obrigados a utilizar vestimenta adequada, que atende à legislação ambiental e trabalhista vigente. A prefeitura de Paulínia, também em nota, disse que realiza "vistorias periódicas" ao local e que há controle rigoroso.
PAULÍNIA, São Paulo — A demora na decisão de uma batalha judicial, que se arrasta há mais de dez anos, envolvendo ex-trabalhadores de Shell e Basf e o Ministério Público do Trabalho (MPT) de Campinas, já deixou 59 mortos — dois no último fim de semana —, todos contaminados por substâncias cancerígenas na área onde trabalharam e funcionou a fábrica de agrotóxicos das duas empresas entre 1977 e 2002, no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia, interior de São Paulo. Parecer técnico encomendado pela Promotoria de Justiça concluiu que houve "negligência, imperícia e imprudência" da Shell e das outras empresas que a sucederam na área no caso da contaminação da fábrica e dos terrenos vizinhos.
A briga trabalhista dos ex-empregados é para garantir um plano de saúde que cubra despesas médicas com as doenças que surgiram depois de anos de contato com produtos químicos para produção de agrotóxicos. Na quinta-feira, em reunião entre os representantes dos trabalhadores e das empresas, o MPT de Campinas conseguiu incluir mais 13 pessoas em uma lista de 772 que já haviam garantido o direito de cobrar dos ex-empregadores gastos com tratamento médico.
Em sentença de agosto de 2010, a 2 Vara de Trabalho de Paulínia determinou que a Shell e a Basf teriam de custear totalmente as despesas médicas, laboratoriais e hospitalares dos ex-funcionários e de seus parentes, além de terceirizados que prestaram serviços à fábrica. À época, as empresas também foram condenadas a pagar multa de R$ 622 milhões por danos à coletividade e R$ 64,5 mil de indenização a cada um dos cerca de 600 ex-trabalhadores e seus filhos. As empresas derrubaram a multa e recorrem do pagamento de despesas médicas no Tribunal Superior do Trabalho.
Filhos de trabalhadoras nasceram com sequelas
A história da contaminação dos trabalhadores e vizinhos da fábrica de pesticidas da Shell começou com a compra de uma área de 400 mil metros quadrados em 1974, no então bairro Poço Fundo. A escolha do local não foi aleatória: vista de cima, a área se parece com a concha que simboliza a empresa. A fábrica, apesar dos protestos contra a sua instalação, começou a funcionar em 1977, com 191 funcionários. Em 1992, foi vendida para a multinacional Cyanamid que, em 2000, repassou-a à Basf. Desde antes da primeira venda, a fábrica já colecionava denúncias de contaminação pelo forte odor no ar e na água, que causava mal-estar físicos, gástrico em funcionários e vizinhos.
— Eu tinha de encher a caixa d’água à noite para usar no outro dia por causa do forte cheiro de produto químico — diz Ciomara Rodrigues, dona de uma chácara ao lado da fábrica.
Ciomara, que vive desde 2002 em um hotel em Paulínia custeado pelas empresas, conviveu com a contaminação desde que a fábrica da Shell começou a operar. Foi na chácara, construída pelo pai, que passou a infância e onde nasceram os dois filhos que "tiveram muitos problemas de saúde desde o nascimento".
— O mais velho vomitava constantemente, tinha diarreia e lacrimejava muito. Mas ninguém desconfiava que a contaminação vinha da chaminé em frente ao portão da minha chácara. Afinal, a Shell é uma grande empresa e ainda tinha o slogan "Você conhece, você confia". Quem iria imaginar que ela faria isso com a gente? — indaga.
Desde 2003, quando deixou a chácara contra sua vontade, Ciomara sofre de depressão e contraiu várias doenças em função da contaminação. Exames indicam que ela foi contaminada por Aldrin e outros químicos produzidos pela Shell. O filho mais velho, de 34 anos, tem o baço aumentado, um dos sintomas de contaminação, e complicações.
Os nove anos na Shell (1979-1988) tiveram consequências trágicas na vida de Benedita Mary Andrade, ex-coordenadora de serviços gerais. Em 20 de abril de 1990, nasceu com paralisia cerebral seu filho Leonardo, hoje com 21 anos.
— Ele teve má-formação na quarta e quinta semanas devido a problemas de contaminação ambiental — conta Mary, que é professora de artes de uma escola em Campinas e briga na Justiça para receber ajuda da empresa para custear o tratamento de Leonardo.
— Não resolve (a indenização), mas vou poder pagar um convênio. Preciso garantir o futuro dele. Saber que o problema dele foi por causa do meu trabalho, é doloroso.
Apesar do número elevado de mortos e da interdição do local desde 2002, não há avisos de que a área ainda está contaminada. O trânsito pelos mais de 400 mil metros quadrados, que incluem a área da fábrica e das chácaras vizinhas, só poderia ser feito com uso de equipamentos e roupas especiais. Até os avisos colocados no início da interdição foram retirados. Durante dois dias em que o GLOBO esteve no local, carros e motos circulavam normalmente. Seguranças contratados pela Shell disseram que não receberam nenhuma orientação sobre os riscos de trabalhar em local com substâncias cancerígenas. Na quarta-feira, trabalhadores limpavam uma pequena lagoa em frente à fábrica sem usar todos os equipamentos de proteção.
Procurada, Basf não se pronuncia sobre o caso
O médico toxicologista Igor Vassialeiff, que tratou dos primeiros pacientes, observa que o grau de contaminação ainda existente não permitiria que pessoas sem proteção circulassem pela área. Segundo ele, a presença de pessoas com pouco ou sem nenhum equipamento mostra que o poder público está relaxando.
Consultado, o Ministério Público estadual, que assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) logo depois que foi confirmada a contaminação da área, em 2001, disse que já está na hora de rever o acordo firmado com as empresas. Segundo a procuradora de meio ambiente do MP de Paulínia, Kelli Altieri Arantes, embora as informações sejam de que há inspeções periodicamente, a ideia é fazer um balanço e atualizar alguns pontos do TAC que podem já não ser suficientes para recuperar a área contaminada. Disse também que o órgão vai investigar se realmente está havendo relaxamento na prevenção e alertas estabelecidos no acordo para assegurar o isolamento da área.
Em nota, a Shell disse que as medidas de recuperação ambiental do bairro Recanto dos Pássaros acontecem há mais de dez anos e prosseguem dentro dos prazos acertados com as autoridades. Sobre os seguranças que estão no local, afirmou que eles não "precisam de vestimentas, máscaras ou qualquer outro tipo de proteção especial, uma vez que a baixa contaminação existente está restrita ao lençol freático". Sobre trabalhadores que atuam em obras de "remediação", diz que são obrigados a utilizar vestimenta adequada, que atende à legislação ambiental e trabalhista vigente. A prefeitura de Paulínia, também em nota, disse que realiza "vistorias periódicas" ao local e que há controle rigoroso.