domingo, 4 de março de 2012

O Fome Zero e a fábula do fim miraculoso da fome no Brasil 

Marcos A. Pedlowsk, artigo publicado no número 234 da Revista Somos Assim


Recentemente, tive a oportunidade de receber uma jornalista que veio dos Estados Unidos para realizar uma reportagem sobre o Programa Fome Zero, que tem recebido muito reconhecimento internacional por ter supostamente acabado com a fome no Brasil. Aliás, é bom que se saiba, os efeitos praticamente mitológicos do Fome Zero na erradicação da fome no Brasil levaram a que o economista José Graziano fosse eleito para presidir a FAO, a agência da ONU que cuida da questão da segurança alimentar, e mais da questão da fome, numa escala global. Nunca é demais lembrar que José Graziano é apenas o segundo brasileiro a presidir a FAO: o primeiro foi Josué de Castro, que até hoje é reconhecido como um dos maiores intelectuais a se debruçar de forma teórica e aplicada sobre o flagelo representado pela fome. 

Após uma entrevista inicial, onde passamos várias horas conversando sobre as minhas críticas ao Fome Zero e seus descendentes como o Bolsa Família, a jornalista me solicitou de forma bastante educada que eu não participasse das entrevistas de campo que seriam feitas, pois minhas opiniões sobre o assunto eram fortes demais, e isto poderia deixar os entrevistados intimidados com a minha presença. Sem tomar aquele pedido como algo ofensivo, eu garanti que teria o maior prazer de ajudar, mas que não estava mesmo pretendendo acompanhá-la em função da agenda cheia que detinha naquele momento. Assim, por dois dias, minha hóspede se encontrou com assentados, uma autoridade municipal envolvida diretamente na implementação das políticas relacionadas à assistência social, e visitou ainda duas comunidades em dois pontos bastante pobres da cidade de Campos. 

Quando essa verdadeira maratona de entrevistas terminou, eu a jornalista tivemos então uma segunda conversa, onde perguntei se ela ainda considerava que as minhas opiniões sobre o Fome Zero eram realmente fortes demais. A partir das entrevistas que havia realizado, a jornalista me confidenciou que todos os seus interlocutores lhe tinham oferecido uma mesma reflexão: programas como o Fome Zero ajudam, mas não resolvem os problemas da pobreza e da fome. E mais ainda, que o público que mais necessitaria dos benefícios trazidos pelo Fome Zero, muitas vezes ficam alijados de participar por motivos prosaicos, como a falta de documentos básicos tal como a certidão de nascimento dos filhos. 

Essas descobertas vão ao encontro de um amplo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas, que em 2009 resultou na publicação de um relatório acerca dos diversos programas, onde ficou apontado que o Fome Zero não havia alterado positivamente o problema nutricional dos seus beneficiários em nenhuma região brasileira. Em outras palavras, a execução do Fome Zero não serviu para diminuir as carências alimentares que, afinal de contas, era o seu principal objetivo declarado. Quando muito, o Fome Zero e seus sucessores têm servido a um propósito positivo que é o de impedir uma piora dos níveis de pobreza e, por consequencia, da fome persistente dos brasileiros. No entanto, este resultado está muito aquém do que é propalado pelo governo federal, que insiste em publicizar que esta seria uma estratégia que beiraria o miraculoso. 

Alguma alma sincera poderia então me instar a oferecer uma solução, já que eu sou tão ávido em criticar estas políticas, que eu considero formas insuficientes de reparação social. Pois bem, na verdade não há uma única solução para o problema da fome, que deriva diretamente de um padrão extremamente concentrado da renda que existe desde que o Brasil foi criado pelos portugueses. E este é o elemento essencial que programas como o Fome Zero e assemelhados não conseguirão resolver. Neste sentido, para termos o início de uma mudança sustentada, e por que não verdadeira, do problema da fome, o Brasil (e principalmente suas elites) teria que enveredar por soluções estratégicas, e não apenas paliativas. Do contrário, o que estamos plantando são mais tempestades sociais. 

Tomemos por exemplo a questão da reforma agrária. Os seus oponentes, principalmente os encastelados nas universidades e na mídia corporativa, vem tratando com um exacerbado ufanismo o papel deletério que o Fome Zero teria tido sobre a capacidade de mobilização dos movimentos sociais que atuam no campo, principalmente o MST. Se isto fosse verdadeiro, estaríamos diante de uma situação que beiraria o suicídio coletivo. Se o Fome Zero realmente abateu o ímpeto dos potenciais clientes da reforma agrária, isto significa que a falta de adoção de uma política estratégica (a da reforma agrária) agora se soma aos efeitos limitados de uma política de mitigação para nos colocar frente a um cenário futuro de falta de alimentos crônica no Brasil. Afinal, todos os dados existentes sobre produção mostram que a alimentação dos brasileiros é garantida pela agricultura familiar da qual os assentados são uma parcela significativa. 

Neste cenário chega a ser lastimável o afastamento que o PT e seus intelectuais realizaram de posições ocupadas historicamente, principalmente aquelas em torno da solução dos problemas da fome. Ao abraçar um pragmatismo inabalável, os outrora defensores de um modelo diferente de desenvolvimento podem estar semeando um futuro nada atrativo para os brasileiros, principalmente os mais pobres.