domingo, 25 de março de 2012


A água passou de necessidade essencial humana à comoditty: adivinha quem perdeu e quem ganhou com isto!
 
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 237 da Revista Somos Assim

Existem coisas que são tão essenciais para a nossa existência que acabamos tomando-as como naturalmente disponíveis. Esse tipo de noção é de tempos em tempos quebrada por fatos prosaicos. No meu caso, um conjunto de fatos levou-me a defrontar com evidências de que a água que chega à minha casa pode não ser tão segura como eu pensava ou, pior, como a propaganda da concessionária anunciava. Mas como não sou assim uma pessoa tão singular que não compartilhe com a maioria dos meus semelhantes este tipo de postura ingênua, creio que foi por isto que um dia Bertold Brecht nos pediu para não tratar nada como natural sob pena de que as coisas se passassem por imutáveis.

Passado o breve preâmbulo, nos detenhamos em algo que parece estar sendo negligenciado, e que pode nos custar muito caro num futuro não muito distante. A Terra é um planeta praticamente coberto por águas, o que já levou alguns a sugerirem que deveria ser chamada Planeta Água. No entanto, apenas 0,77% da água doce é acessível para consumo humano. Para complicar ainda mais a situação, em torno de 0,61% da água doce está localizada em lençóis subterrâneos. Segundo Marco Tadeu Grassi, professor e pesquisador da Universidade Federal do Paraná, a água potável de boa qualidade é fundamental para a saúde e o bem estar humano. Entretanto, a maioria da população mundial ainda não tem acesso a este bem essencial. Mais do que isto, existem estudos que apontam para uma escassez cada vez mais acentuada de água para a produção de alimentos, desenvolvimento econômico e proteção de ecossistemas naturais. Segundo Grassi, para exercer tais atividades, especialistas estimam que o consumo mínimo de água per capita deveria ser de pelo menos 1000 m3 por ano. 
 
No entanto, em 26 países, a maioria localizado na África, já se encontram abaixo deste valor. A situação é tão preocupante, que pesquisadores da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) acabam de divulgar estimativas que nas próximas décadas, 3,9 bilhões de pessoas — cerca de 40% da população mundial — viverão em áreas de bacias hidrográficas que definham, enfrentando poluição permanente e secas por pelo menos um mês ao ano.

De saída, estes dados deveriam estar sendo acompanhados por medidas de urgência que reduzissem não só o consumo, mas, principalmente, a contaminação química e biológica das reservas existentes. No entanto, não é isto que tem acontecido, principalmente após o advento da Revolução Industrial e de sua contrapartida agrícola, a Revolução Verde. Aqui há a necessidade de um parêntese importante, pois apesar da agricultura responder por 74% do consumo da água doce no mundo, os governos e empresas preferem se concentrar num apelo para que os consumidores urbanos façam o esforço de conter o desperdício.

Mas quem pensa que a omissão do papel dos cultivos agrícolas no consumo excessivo de água é fruto de uma distração, a verdade é que esta é uma ação deliberada para esconder a raiz do problema. O fato é que não interessa chamar a atenção para os problemas causados pelo atual modelo agrícola, especialmente no que se refere à água. Isto se dá, entre outras razões, porque não são os países em desenvolvimento que estão arcando com o estresse do alto consumo para manter um conjunto de monoculturas que acabam sendo consumidas nos países ricos, onde os estoques de água são mais baixos. Além disso, como a maior parte das corporações que hoje se alimenta do atual modelo agrícola também estão localizados nos países centrais, colocar o holofote do consumo sobre a agricultura mostraria quem são os reais responsáveis pela crise hídrica em que muitos povos se encontram neste momento.

Para acentuar a disparidade entre países ricos e pobres no tocante ao acesso à água potável há o fato de que a água se tornou hoje uma das principais commodities alimentando os balanços financeiros de grandes corporações econômicas. Um exemplo disto é a multinacional suíça Nestlé que de grande controladora do comércio de alimentos passou rapidamente à condição de uma das principais potências do mercado de água no mundo. Só no Brasil a Nestlé comprou marcas tradicionais, como a São Lourenço, e passou a adquirir grandes reservas das quais se serve para chegar próximo de ser um verdadeiro monopólio no setor da água engarrafada.

Mas quem pensa que o controle privado da água se resume à aquisição de fontes naturais ou de empresas públicas que historicamente atuavam no setor deveria pensar duas vezes. O problema aparece também no controle político que as corporações privadas já possuem sobre os órgãos governamentais que deveriam estar controlando suas práticas empresariais. No entanto, em países como o Brasil, os programas de privatização das empresas estatais que antes operavam no abastecimento de água não foram acompanhados por mecanismos eficientes de monitoramento que assegurasse não apenas a qualidade dos serviços, mas também a devida transparência no caso de conflitos com os consumidores. O resultado disto foi o estabelecimento de um ambiente do “salve-se quem puder”, onde normalmente os consumidores são os perdedores.