domingo, 13 de novembro de 2011

A herança maldita da ditadura e suas múltiplas manifestações no interior das universidades públicas brasileiras

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 220 da Revista Somos Assim


 
Apesar de passado mais de um quarto de século desde o encerramento do regime de exceção imposto pelos militares em 1964, a sociedade brasileira continua sentindo os efeitos dos anos de autoritarismo. A área que é lembrada com mais costume é a da segurança pública, como bem salientou o hoje exilado deputado Marcelo Freixo (PSOL/RJ) acerca do criador do famigerado Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de Janeiro, um militar de alta patente com laços com o regime de exceção. No entanto, a persistência da herança maldita da ditadura está mais capilarizada dentro da sociedade brasileira do que a maioria dos analistas quer nos fazer crer. Isso aparece, por exemplo, na reação extremada de militares da ativa e da reserva em relação à chamada Comissão da Verdade, que após ser combatida com ferocidade, acabou tendo uma versão light que a tornou mais próxima de algo como uma comissão da verdade amordaçada.

No entanto, existem outras áreas que foram duramente afetadas e que por sua natureza questionadora das verdades fabricadas pelas baionetas sofreram com uma ação focada por parte dos militares. Um exemplo disto são as universidades públicas. Para quem não se lembra, um dos primeiros atos do regime de 1964 foi remover de dentro dos campi universitários todos aqueles pensadores identificados como ameaçadores à nova ordem autoritária. Um caso famoso foi o do fundador da sociologia brasileira, Florestan Fernandes, que apesar de lecionar numa universidade pública estadual, teve seu nome incluído numa lista de aposentadorias forçadas destinadas a docentes de universidades federais. O que poucos sabem é que mesmo estando vivo após a queda do regime, professor Florestan jamais foi reinstalado em seu cargo de titular do Instituto de Filosofia e Ciência Humanas (IFCH) da Universidade de São Paulo. A explicação oficial oferecida foi a de que Florestan Fernandes nunca teria pedido para ser reinstalado, o que, por sua vez, o sociólogo jamais quis fazer por acreditar que a sua reinstalação deveria ser algo a ser feito pela instituição como um gesto de compromisso com a redemocratização que se iniciava, e não como um pedido pessoal de um acadêmico que fora cassado em função de suas idéias, à sua revelia.

Mas as universidades públicas não foram apenas extirpadas de quadros docentes, considerando que a maioria dos mortos pelo regime de 1964 era ligada às universidades públicas, especialmente na condição de estudantes. Ao eliminar fisicamente os que ousavam resistir dentro das universidades, o regime militar acabou criando um vazio intelectual que resultou num encurtamento duradouro da capacidade de gerar pensamento crítico por partes das universidades brasileiras. Não foi à toa que os governos neoliberais instalados a partir da eleição de Fernando Collor em 1989 tiveram apenas resistências pontuais dentro das universidades. A maioria dos acadêmicos embarcou com fervor na defesa dos diversos governos, e aqueles que ousaram resistir acabaram sendo postos em verdadeiros guetos, onde ficou fácil tanto a sua execração interna como também por parte de órgãos da mídia corporativa representada por publicações tipo Revista Veja.

Entretanto, nos últimos anos o que tem sido visto não é apenas pobreza intelectual, especialmente nos quadros dirigentes, e que vem impedindo que a maioria das universidades públicas cumpram seu papel crítico e de formulação de propostas alternativas para o desenvolvimento nacional; o que tem sido visto também é a assimilação de práticas não republicanas que se acreditavam estar restritas a prefeituras dos mais distantes grotões brasileiros. Estas incluem, entre outras coisas, o uso exacerbado de comissões especiais de sindicância para perseguir os possíveis críticos das práticas dominantes dentro das direções universitárias. Além disso, como no caso particularmente emblemático da Universidade Federal de Rondônia que neste momento se encontra numa grave crise institucional, também assistimos à revelação de casos de corrupção e improbidade administrativa, a maioria associada à realização de obras. O interessante é que, ao contrário das prefeituras dos grotões, quem está sendo flagrado cometendo estes crimes são os antes respeitados reitores e decanos, a maioria detentora de lustrosos títulos de doutor, dos quais não se esperaria este tipo de estripulia com o dinheiro público. O pior é que são poucas as vozes dentro das universidades a se manifestarem contrariamente, e são justamente aqueles que acabam sendo alvo das tais comissões especiais de sindicância. O assustador é que, no caso de Rondônia, quem acabou sendo preso foram os que cobravam a apuração dos crimes supostamente cometidos pela reitoria, algo que se converte numa expressão ainda mais evidente das contradições impostas pela persistência da herança autoritária da ditadura de 1964.

Dada a posição estratégica das universidades públicas dentro do desenvolvimento humano, científico e tecnológico brasileiro, a permanência de práticas que atentam contra sua saúde institucional não é um problema a ficar restrito dentro dos muros universitários. Afinal, a sociedade brasileira, especialmente os mais pobres, é quem financia estas instituições. Além disso, ao se desperdiçar valiosos recursos, muito além dos financeiros, o Brasil não perde apenas no aspecto monetário, mas, principalmente, na sua capacidade de gerar profissionais com uma mentalidade cidadã. Em função disto, se de dentro das universidades não está se vendo a devida reação contra determinadas práticas, é preciso que a sociedade civil reaja. O que não pode é ficar tudo como está.