A transposição e a seca
Faltam estadistas que conduzam e aprofundem a revolução na relação com o semiárido
Roberto Malvezzi (Gogó)
Faltam estadistas que conduzam e aprofundem a revolução na relação com o semiárido
Roberto Malvezzi (Gogó)
Pode parecer uma atitude menor de nossa parte reiterar críticas à transposição nesse momento de seca, afinal, o sofrimento das pessoas e dos animais é infinitamente mais relevante que nossas divergências sobre determinadas obras.
Entretanto, é exatamente em função desse sofrimento, e da busca incessante para encontrar caminhos de solução, que esse debate mais uma vez se coloca na ordem do dia.
Ninguém acaba com a seca. Ela é um fenômeno natural e normal da região semiárida. Portanto, essas matérias sensacionalistas que gostam de falar de “terra esturricada, mata morta, animais morrendo”, revelam ignorância a respeito da região. Ela é assim e assim será. Por isso, os índios já chamavam essa mata de “caatinga”, que quer dizer exatamente “mata branca”. Nada está morto, ao contrário, a caatinga hiberna, adormece para enfrentar um período sem chuva. Com as primeiras chuvas tudo volta à vida. Apenas o ser humano e os animais, trazidos de fora, não hibernam. Esses precisam comer e beber, enquanto a natureza se defenda por conta própria.
Mas, se a natureza não muda – a não ser por uma profunda mudança no clima global -, a infraestrutura para adequar o ser humano a essa realidade precisa ser mudada. Essa é a única saída inteligente. Costumamos repetir que os povos do gelo aprenderam a viver com o gelo, os povos do deserto aprenderam a viver no deserto, e que nós já deveríamos ter aprendido a conviver com o semiárido. Essa cultura inovadora está em construção, mas sofre resistências terríveis de quem aprendeu a ganhar poder e riqueza às custas da miséria do povo.
Para quem se lembra, o grande argumento governamental – de marketing – para bancar a transposição era a proposta de abastecer 12 milhões de pessoas com água potável. Para tal, cunhou-se a divisão do semiárido brasileiro entre “Nordeste Setentrional” e o resto do “Nordeste”. Assim, induzia os incautos a pensarem que o semiárido está restrito ao Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ainda mais, governo e parte da mídia, por desconhecimento ou interesses escusos, afirmavam que a transposição iria levar água para o “semiárido”, desconhecendo totalmente a pertença da Bahia, Sergipe, Alagoas, Piauí, Maranhão e Norte de Minas ao mesmo semiárido.
Essa seca matou o argumento oficial. A seca começou em território baiano, onde qualquer estudante de geografia do Brasil, ensino primário ou médio, sabe que estão 40% do semiárido brasileiro. A transposição, mesmo que funcionasse ou venha funcionar um dia, aponta na direção exatamente contrária ao território baiano. Aponta para Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Dr. Manoel Bonfim Ribeiro, por quase uma década diretor do DENOCS, costuma dizer que as águas estocadas na Bahia cabem num único açude do Ceará. Para se ter uma ideia mais precisa, dos 36 bilhões de metros cúbicos de água que podem ser estocados no semiárido, 28 bilhões estão no Ceará. A Bahia possui capacidade para estocar apenas um bilhão de metros cúbicos.
A transposição continua semiparalisada, a um custo que já supera oito bilhões de reais, sem por uma gota d’água a quem quer que seja. Ao contrário, destruiu açudes e cisternas por onde os canais já passaram, aumentando a penúria da população que esperava aquela água como redenção de suas vidas.
Para completar, o próprio Dr. Bonfim afirma que precisamos fazer a distribuição da água estocada nos açudes. Afinal, segundo informações recentes do governo cearense, os açudes da região estão em média com 70% de sua capacidade abastecida. Portanto, não falta água, falta distribuição. Para ele, temos apenas uma rede de cinco mil km de adutoras no semiárido, quando precisaríamos de 25 mil km para democratizar a água para o meio urbano. Segundo a Agência Nacional de Águas, 1700 municípios do Nordeste precisam de adutoras ou serviços de água para não entrarem em colapso hídrico até 2025.
Já expusemos à exaustão que essa seca, terrível em termos de diminuição das chuvas, mas prevista no clico das secas, ao menos não fará vítimas humanas na extensão daquela de 1982. A perda de safra e animais ainda é inevitável.
Continuaremos defendendo uma proposta sistêmica para todo semiárido, sem exclusões. O caminho é a convivência com esse ambiente, através de uma imensa malha de pequenas obras – se não fossem as cisternas para beber e produzir nesse momento, ainda que seja como depósito de água de pipas, o povo estaria bebendo lama de barreiros -, da agroecologia adaptada, da criação de animais resistentes ao clima, da apicultura, da garantia da terra aos agricultores, assim por diante. Para o meio urbano, a democratização da água através das adutoras, priorizando o abastecimento humano e a dessedentação dos animais.
Temos todos os meios nas mãos. Faltam estadistas que conduzam e aprofundem a revolução na relação com o semiárido. Quando assim for, secas serão apenas fenômenos naturais, não mais tragédias sociais.
Roberto Malvezzi (Gogó) é assessor da Comissão Pastoral da Terra.
Entretanto, é exatamente em função desse sofrimento, e da busca incessante para encontrar caminhos de solução, que esse debate mais uma vez se coloca na ordem do dia.
Ninguém acaba com a seca. Ela é um fenômeno natural e normal da região semiárida. Portanto, essas matérias sensacionalistas que gostam de falar de “terra esturricada, mata morta, animais morrendo”, revelam ignorância a respeito da região. Ela é assim e assim será. Por isso, os índios já chamavam essa mata de “caatinga”, que quer dizer exatamente “mata branca”. Nada está morto, ao contrário, a caatinga hiberna, adormece para enfrentar um período sem chuva. Com as primeiras chuvas tudo volta à vida. Apenas o ser humano e os animais, trazidos de fora, não hibernam. Esses precisam comer e beber, enquanto a natureza se defenda por conta própria.
Mas, se a natureza não muda – a não ser por uma profunda mudança no clima global -, a infraestrutura para adequar o ser humano a essa realidade precisa ser mudada. Essa é a única saída inteligente. Costumamos repetir que os povos do gelo aprenderam a viver com o gelo, os povos do deserto aprenderam a viver no deserto, e que nós já deveríamos ter aprendido a conviver com o semiárido. Essa cultura inovadora está em construção, mas sofre resistências terríveis de quem aprendeu a ganhar poder e riqueza às custas da miséria do povo.
Para quem se lembra, o grande argumento governamental – de marketing – para bancar a transposição era a proposta de abastecer 12 milhões de pessoas com água potável. Para tal, cunhou-se a divisão do semiárido brasileiro entre “Nordeste Setentrional” e o resto do “Nordeste”. Assim, induzia os incautos a pensarem que o semiárido está restrito ao Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Ainda mais, governo e parte da mídia, por desconhecimento ou interesses escusos, afirmavam que a transposição iria levar água para o “semiárido”, desconhecendo totalmente a pertença da Bahia, Sergipe, Alagoas, Piauí, Maranhão e Norte de Minas ao mesmo semiárido.
Essa seca matou o argumento oficial. A seca começou em território baiano, onde qualquer estudante de geografia do Brasil, ensino primário ou médio, sabe que estão 40% do semiárido brasileiro. A transposição, mesmo que funcionasse ou venha funcionar um dia, aponta na direção exatamente contrária ao território baiano. Aponta para Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Dr. Manoel Bonfim Ribeiro, por quase uma década diretor do DENOCS, costuma dizer que as águas estocadas na Bahia cabem num único açude do Ceará. Para se ter uma ideia mais precisa, dos 36 bilhões de metros cúbicos de água que podem ser estocados no semiárido, 28 bilhões estão no Ceará. A Bahia possui capacidade para estocar apenas um bilhão de metros cúbicos.
A transposição continua semiparalisada, a um custo que já supera oito bilhões de reais, sem por uma gota d’água a quem quer que seja. Ao contrário, destruiu açudes e cisternas por onde os canais já passaram, aumentando a penúria da população que esperava aquela água como redenção de suas vidas.
Para completar, o próprio Dr. Bonfim afirma que precisamos fazer a distribuição da água estocada nos açudes. Afinal, segundo informações recentes do governo cearense, os açudes da região estão em média com 70% de sua capacidade abastecida. Portanto, não falta água, falta distribuição. Para ele, temos apenas uma rede de cinco mil km de adutoras no semiárido, quando precisaríamos de 25 mil km para democratizar a água para o meio urbano. Segundo a Agência Nacional de Águas, 1700 municípios do Nordeste precisam de adutoras ou serviços de água para não entrarem em colapso hídrico até 2025.
Já expusemos à exaustão que essa seca, terrível em termos de diminuição das chuvas, mas prevista no clico das secas, ao menos não fará vítimas humanas na extensão daquela de 1982. A perda de safra e animais ainda é inevitável.
Continuaremos defendendo uma proposta sistêmica para todo semiárido, sem exclusões. O caminho é a convivência com esse ambiente, através de uma imensa malha de pequenas obras – se não fossem as cisternas para beber e produzir nesse momento, ainda que seja como depósito de água de pipas, o povo estaria bebendo lama de barreiros -, da agroecologia adaptada, da criação de animais resistentes ao clima, da apicultura, da garantia da terra aos agricultores, assim por diante. Para o meio urbano, a democratização da água através das adutoras, priorizando o abastecimento humano e a dessedentação dos animais.
Temos todos os meios nas mãos. Faltam estadistas que conduzam e aprofundem a revolução na relação com o semiárido. Quando assim for, secas serão apenas fenômenos naturais, não mais tragédias sociais.
Roberto Malvezzi (Gogó) é assessor da Comissão Pastoral da Terra.