Agrotóxicos, interesses e anti-jornalismo em reportagem da Revista Veja
Por Elenita Malta Pereira
Doutoranda em História na UFRGS
Doutoranda em História na UFRGS
É o público que está sendo solicitado a assumir os riscos
que os controladores de insetos calculam. (…)
A obrigação de tolerar, de suportar,
dá-nos o direito de saber.
Rachel Carson, em Primavera Silenciosa
que os controladores de insetos calculam. (…)
A obrigação de tolerar, de suportar,
dá-nos o direito de saber.
Rachel Carson, em Primavera Silenciosa
A matéria “A verdade sobre os agrotóxicos”, publicada em Veja (edição de 4/1/2012),
revisita um tema que é alvo de polêmicas, oposições apaixonadas e
amplas discussões no Brasil desde os anos 1970. No entanto, apesar de
décadas de controvérsia, já no título, a revista demonstra que pretende
revelar a verdade sobre o assunto. A Associação Brasileira de
Agroecologia (ABA), em carta-resposta à Veja,
considerou o tratamento dado a um tema tão controverso como “parcial e
tendencioso”, apontando uma série de equívocos na reportagem.
Em Primavera Silenciosa, o primeiro alerta mundial contra os
pesticidas, publicado em 1962, Rachel Carson descreveu diversos casos
de pulverizações – especialmente de diclorodifeniltricloroetano (DDT) –
nos Estados Unidos, nos anos 1950-60, quando morreram enormes
quantidades de pássaros, peixes, animais selvagens e domésticos.
As pulverizações para exterminar supostas “pragas” também contaminaram
as águas de rios, córregos, dos oceanos, os solos e os humanos.
Carson já constatava, há 50 anos, que a questão dos resíduos químicos
nos alimentos era tema de ardorosos debates. A existência de resíduos
ou era desprezada pela indústria, que a considerava sem importância, ou
era francamente negada. No entanto, pesquisas comprovavam, já naquela
época a associação da presença do DDT no corpo humano com a
alimentação, ao analisar gordura humana e amostras de alimentos em
restaurantes e refeitórios.
Para a revista, “agrotóxico” é termo carregado de julgamento valor;
já “defensivos” seria correto, porque tais produtos
serviriam para “defender” a plantação das pragas, insetos, parasitas…
já “defensivos” seria correto, porque tais produtos
serviriam para “defender” a plantação das pragas, insetos, parasitas…
Motivada pela divulgação, em dezembro de 2011,
de um estudo sobre contaminação de alimentos por pesticidas promovido
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) referente ao ano
de 2010, a reportagem da Veja começa questionando o uso da
palavra “agrotóxico”: o “nome certo é defensivo agrícola”. Segundo a
matéria, “agrotóxico” é um termo impreciso e carregado de julgamento
valor; já “defensivos” seria correto, porque esses produtos não servem
para intoxicar o ambiente ou o consumidor, mas para “defender” a
plantação das pragas, insetos e parasitas. Esse debate é antigo,
construído ao longo de uma verdadeira contenda, que foi protagonizada
por ecologistas, políticos e representantes das indústrias
agroquímicas, desde os anos 1970. A própria nominação dos agroquímicos
determinava de que “lado” estava quem nomeava: de um lado, executivos
das indústrias fabricantes que, obviamente, queriam vender seus
produtos; pesquisadores que recebiam financiamento dessas empresas para
suas pesquisas e funcionários públicos, todos trabalhando para
“defender” seus interesses. Do outro lado, entidades ambientalistas de
vários estados, professores universitários e pesquisadores preocupados
com o efeito desses produtos na saúde das pessoas e da natureza.
O termo “agrotóxico”, mais do que portar um juízo de valor, está
consolidado na legislação brasileira sobre o tema, a Lei 7.802/89. A
palavra já estava presente na primeira legislação estadual, a Lei 7.747,
publicada no Rio Grande do Sul, em dezembro de 1982,
fruto de um amplo debate liderado por políticos, pesquisadores e
ecologistas. O ecologista José Lutzenberger considerou a publicação
dessa lei uma “vitória sem precedentes”, uma conquista da sociedade
civil, inédita em diversos países. Por outro lado, o termo “defensivos
agrícolas” também não é isento de valor: expressa que essas substâncias
são boas, defendem a lavoura de pragas. No entanto, o próprio conceito
do que pode ser considerado praga é questionável, depende do ponto de
vista de quem está observando uma plantação. O que é praga na
agricultura que usa produtos químicos pode ser um aliado no controle
natural de insetos realmente prejudiciais, e até mesmo um indicador da
saúde das plantas para quem pratica agricultura ecológica.
O interessante é que, apesar de afirmar que o certo é “defensivo
agrícola”, as jornalistas usam, em trechos da reportagem, o termo
agrotóxico – não como citação de outra fonte, o que é uma contradição.
A matéria da Veja afirma que apenas uma parte muito pequena
das amostras analisadas pela Anvisa continha agrotóxicos acima do
permitido. Mais ainda, que os motivos dessa ocorrência envolvem os
agricultores: ou eles aplicaram doses acima do indicado, ou
desrespeitaram o período de carência. A estratégia de culpar o
agricultor também data de bastante tempo.
Desde os anos 1970, o problema, para os defensores da química na
agricultura, nunca é o produto, mas sim, o agricultor, como se a
toxicidade só dependesse do uso e não dos componentes utilizados na
fabricação. A propaganda de agrotóxicos, em geral, anunciava cada novo
pesticida como “mais eficaz” no combate às pragas, mais eficiente que o
anterior, só que, muitas vezes, não dizia que era também mais venenoso.
Mas a verdadeira avalanche de casos de intoxicação de agricultores
parece demonstrar que esses produtos são muito perigosos. Até porque, se
não fossem, não haveria necessidade do desenho de caveiras em seus
rótulos.
A matéria da Veja faz afirmações de forma leviana e
irresponsável para a população leiga no assunto, passando a impressão
que os agrotóxicos não são tão perigosos assim. Ela diz que os alimentos
que lideram o ranking da Anvisa de forma alguma representariam risco à
saúde, que os resíduos estão dentro dos níveis seguros e que o uso de
agrotóxicos não-autorizados não é prejudicial à saúde. Neste último
caso, a justificativa seria o alto custo para os fabricantes alterarem
os rótulos, indicando outros cultivos onde os pesticidas poderiam ser
utilizados. Aqui, podemos perceber mais uma vez que os interesses das
empresas sempre são relevantes e merecem ser preservados.
No entanto, a reportagem se contradiz – novamente – declarando que os
resíduos de agrotóxicos não podem ser removidos dos alimentos com
água, ou qualquer outra substância, já que o veneno penetra na polpa do
alimento ou circula pela seiva da planta. Essa afirmação é um “tiro no
pé”, muito negativa para quem quer defender os “defensivos”, e reforça
o argumento de quem luta contra os agrotóxicos: um dos maiores
problemas é a manutenção dos pesticidas no ambiente, por muito tempo;
dependendo do produto, pode levar anos ou décadas para desintegrar-se,
como é o caso bastante conhecido do DDT. Aliás, a matéria relata que,
se o agricultor seguir a bula corretamente, “o produto sofrerá
degradação natural com a ação dos raios solares, da chuva e de
microorganismos”. Segundo a ABA, isso é uma inverdade: “as
consequências ambientais e para a saúde, em função de uma aplicação que
deixou resíduos, podem permanecer por muito tempo”.
São casos de bebês que adoeceram por causa do leite;
crianças mortas ao ingerirem água contaminada; agricultores fulminados em pulverizações aéreas, entre inúmeros muitos outros
crianças mortas ao ingerirem água contaminada; agricultores fulminados em pulverizações aéreas, entre inúmeros muitos outros
Segundo a matéria da Veja, só há riscos à saúde do agricultor quando ele não respeita as regras de uso, já que os equipamentos de segurança o protegeriam do contato com o veneno. No entanto, nem sempre o agricultor tem acesso a esses equipamentos ou à informação de como utilizá-los corretamente. Além disso, há muitos casos de intoxicação que independem do seu uso.
Consultando os arquivos dos jornais de maior circulação do país, é
possível constatar uma quantidade impressionante de notícias sobre
envenenamento e morte de agricultores, cuja causa envolveu a aplicação
de produtos químicos na lavoura. Há períodos em que as ocorrências são
diárias, envolvendo famílias inteiras, em cidades do interior do Brasil.
Casos de jovens que dormiram durante meses, sem perspectiva de
acordar, depois do contato com agrotóxicos; bebês que ficaram doentes
por causa do leite, já que a vaca que o fornecia comeu pasto
contaminado com pesticidas; crianças que morreram pela ingestão de água
contaminada; agricultores fulminados durante pulverizações aéreas sem
aviso prévio, entre outros, são exemplos nefastos de que o equipamento
não é garantia de segurança total.
Artigo da Gazeta Mercantil (Porto Alegre, 28/05/1975)
relata que o consumo de pesticidas no Brasil aumentou dez vezes entre
1964 e 1974 e questiona: “em que medida esse consumo teria sido
fortemente incentivado, provocando o uso indiscriminado e exagerado de
defensivos?” Se por volta de 1974 o consumo somava cerca de 74 mil
toneladas anuais, o que dizer das cerca de 1 milhão toneladas em 2010
(de acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos
para a Defesa Agrícola)? O estímulo ao uso intensivo desses produtos
interessa aos fabricantes, pelos altíssimos ganhos, mas, ao mesmo
tempo, provoca prejuízos não totalmente contabilizados ao ambiente e à
vida humana.
Também segundo a reportagem da Veja, não haveria comprovação
científica de que o consumo a longo prazo de resíduos de pesticidas
nos alimentos provoque problemas sérios em seres humanos. Essa
constatação demonstra um profundo desconhecimento da literatura
científica sobre os efeitos desses produtos na saúde humana. Em relatório
de 2012, elaborado pelo Instituto Nacional do Câncer, José de Alencar
Gomes da Silva (Inca) consta que “importantes compostos cancerígenos
encontram-se entre os metais pesados, os agrotóxicos, os solventes e as
poeiras”. Além da população rural, que fica mais exposta pelo manuseio
desses produtos, “toda a população pode ter
contato com agrotóxicos, seja pela ocupação, pela alimentação ou pelo
ambiente”. Substâncias como o DDT, clordane e lindane são promotoras de
tumores. O relatório cita uma extensa bibliografia de estudos que
relacionam, entre outros agentes, agrotóxicos e câncer.
Cientistas da Universidade de Caen, na
França, que pesquisam há anos os efeitos dos herbicidas à base de
glifosato (recordistas de vendas no Brasil), descobriram que eles
contêm toxicidade que afeta diretamente as células humanas. Em artigos
científicos recentes, os pesquisadores afirmaram que mesmo pequenos
resíduos que ficam nos alimentos podem causar danos, especialmente ao
rim humano. Artigo de professora da USP (Larissa Bombardi, 2011)
afirma, a partir de dados do Sistema Nacional de Informações
Tóxico-Farmacológicas – Ministério da Saúde/Fiocruz (Sinitox), que no
período de 1999 a 2009 ocorreram cerca de 62 mil intoxicações por
agrotóxicos de uso agrícola no Brasil.
ONU atesta que o Brasil é principal destino de agrotóxicos proibidos.
Sem qualquer base, Veja sustenta que somos
“um dos países mais rigorosos” no registro desses produtos
Sem qualquer base, Veja sustenta que somos
“um dos países mais rigorosos” no registro desses produtos
Outra informação da matéria da Veja
é que “o Brasil é um dos países mais rigorosos no registro de
agrotóxicos”. No entanto, segundo a ONU (Organização das Nações
Unidas), nosso país é o principal destino de agrotóxicos proibidos no
exterior. Diversos produtos vedados nos Estados Unidos e na Europa são
comercializados livremente aqui. Se o controle fosse mesmo rigoroso, o
Brasil seria o maior consumidor mundial de agrotóxicos?
Encaminhando-se para o final, a reportagem põe em dúvida a
credibilidade dos alimentos orgânicos, aqueles que são cultivados sem
agrotóxicos. Ela questiona as regras para credenciamento e fiscalização:
com um controle insuficiente, haveria riscos à saúde da população no
consumo de alimentos orgânicos.
Citando o caso de contaminação por Escherichia coli, ocorrido em junho de 2011,
na Alemanha, em que pessoas morreram ao consumir brotos de feijão
germinados produzidos por uma fazenda orgânica, a matéria da Veja
conclui que “não só por ser orgânico um produto é necessária e
automaticamente mais saudável que o similar cultivado com o auxílio de
defensivos”. Sem diminuir a gravidade das mortes ocorridas na Alemanha,
é muito precipitado afirmar que não haveria diferença de risco no
consumo de alimentos orgânicos ou não-orgânicos. Esse foi um caso
isolado, que poderia ter
ocorrido mesmo se a produção não fosse orgânica, afinal, é possível
garantir que a fiscalização dos alimentos que usam produtos tóxicos
seja eficiente?
A humanidade viveu milênios praticando agricultura sem venenos. Só após a segunda
guerra mundial o uso da química na lavoura passou a ser recomendado
como a melhor solução para o combate das “pragas” e para acabar com a
fome no mundo – o que não ocorreu: os insetos ficaram resistentes aos
venenos e há muitas pessoas passando fome ainda no século 21. A chamada
“Revolução Verde” introduziu técnicas alardeadas como “modernas”
(cultivo intensivo do solo, monocultura, irrigação, controle químico de
pragas e manipulação genética de plantas), mas que geram dependência
dos agricultores em relação às empresas que vendem os insumos
vinculados a esse tipo de agricultura.
A produção de alimentos orgânicos, através de métodos agroecológicos,
não interessa às grandes empresas que controlam o agronegócio no
Brasil. Os orgânicos não dependem da compra de sementes (geneticamente
modificadas ou não) ou da compra de agrotóxicos. Na agricultura
ecológica, ou orgânica, o agricultor é autônomo, controla sua semente e
seus próprios insumos, entre eles, matéria orgânica (compostagem,
folhas de árvores, resíduos industriais, estrume, etc). O que a
agricultura convencional considera como praga (insetos, fungos), ou
erva daninha que deve ser exterminada pelos agrotóxicos, na agricultura
ecológica é um sintoma, indicador da saúde da planta e do solo.
Cabe ao consumidor ficar atento ao debate, sua história
e aos interesses por trás dele. Como já dizia Rachel Carson em 1962, nós temos o direito de saber. No mínimo
e aos interesses por trás dele. Como já dizia Rachel Carson em 1962, nós temos o direito de saber. No mínimo
No livro Plantas doentes pelo uso de agrotóxicos,
o engenheiro agrônomo francês Francis Chaboussou divulgou a “teoria da
trofobiose”. Após anos de pesquisa, ele concluiu que o uso continuado
de agrotóxicos adoece as plantas. E somente as plantas doentes, em
desequilíbrio metabólico, são atacadas pelos parasitas. A planta
equilibrada em crescimento vigoroso ou em descanso não é nutritiva para
as pragas. Na verdade, na agricultura ecológica, a propriedade rural é
pensada como um agroecossistema, em que a observação das interações que
ocorrem no ambiente é vital. Solo nutrido, planta saudável. Inseridos
na diversidade de espécies da propriedade agrícola, os alimentos
orgânicos tendem a ser muito mais saudáveis que os não-orgânicos.
Em abril de 2012, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) divulgou a primeira parte de um dossiê
sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Escrito por professores
universitários e pesquisadores com larga experiência no assunto, o
dossiê externa a preocupação desses profissionais com a escalada
ascendente de uso de agrotóxicos no Brasil e a contaminação do ambiente e
das pessoas dela resultante, com severos impactos sobre a saúde
pública.
O relatório cita exemplos de cidades onde ocorre a contaminação das
águas, no Ceará e em Mato Grosso, com destaque para Lucas do Rio Verde
(MT), onde “chuvas de agrotóxicos”, ou seja, pulverizações aéreas
indiscriminadas causaram surto de intoxicações agudas em crianças e
idosos, bem como contaminação do leite materno.
Como as bases cientificas que sustentam o uso dos agrotóxicos são
frágeis (“deveria caber às empresas demonstrar com rigor que não são
nocivos para a saúde humana ou para o meio ambiente”), os pesquisadores
questionam: “É lícito manter os agrotóxicos em uso na agricultura nesse
contexto?” Além disso, os inúmeros casos de contaminações de
trabalhadores e população em geral, desde os anos 1970 até hoje, oneram o SUS, custando muitos milhões aos cofres públicos.
Como podemos perceber, a “verdade sobre os agrotóxicos” está bem
longe de ser alcançada. O debate está polarizado: de um lado, as
indústrias e os comerciantes, a quem interessa divulgar que os
“defensivos” não causam danos à saúde humana; do outro, profissionais da
área da saúde engajados na posição de que os agrotóxicos fazem sim
muito mal aos humanos e aos ecossistemas onde são aplicados. A
preocupação aumenta na mesma medida que o consumo desses produtos no
Brasil, que desde 2008 carrega o título nada honrável de maior comprador
de agrotóxicos do mundo.
Cabe ao consumidor ficar atento ao debate, à história e aos
interesses por trás dele. Afinal, como já dizia Rachel Carson lá em
1962, nós temos o direito de saber. No mínimo.