quinta-feira, 4 de abril de 2013

A reação à nova lei do trabalho doméstico revela o atraso que vive nas entranhas da elite brasileira



Marcos A. Pedlowski, artigo publicado inicialmente no site da Revista Somos Assim

O Brasil é um país curioso, pois enquanto apresenta uma fachada de modernidade ao mundo globalizado, em suas entranhas vive o mais completo e completo atraso. Uma das facetas mais grotescas desse atraso é a forma com que empregados domésticos ainda são tratados e vistos por um número significativo dos membros da elite brasileira. E isto se revela de forma clara agora que o Congresso Nacional tardiamente incorporou os trabalhadores domésticos ao restante da classe trabalhadora brasileira. As reações estão vindo de todos os lados, e aparecem sob diferentes tonalidades, mas a principal evidência é de que muita gente está perplexa e desgostosa.

A reação mais visível foi uma capa da Revista Veja que colocou um indivíduo engravatado lavando pratos sob a manchete/ameaça de que o próximo poderia ser qualquer um de nós que hoje convivemos com um trabalhador doméstico dentro de nossas casas. Esta reação seria cômica se não fosse trágica. Afinal, os “direitos” que foram concedidos não deveriam precisar sequer de legislação para que fossem praticados: a boa etiqueta manda, por exemplo, que ninguém deva trabalhar de graça, especialmente se é fora do turno normal de trabalho. Além disso, o fato de existir uma jornada máxima de trabalho deveria fazer parte da realidade de qualquer trabalhador, e não vejo o porquê de os domésticos serem tratados de forma diferente E o fato de que foram tratados de forma diferenciada, e para pior, deveria ser motivo de vergonha em vez de servir de gênese para argumentos estapafúrdios em prol da manutenção do status quo.

Em meus tempos de estudante de doutorado nos EUA, eu vivia tendo de explicar como é que a classe média brasileira tinha condição de manter empregados domésticos em tempo integral, algo que só os ricos norte-americanos são capazes de fazer Mas é claro que nunca consegui convencer as pessoas de forma total, pois numa sociedade tão pragmática como a norte-americana, o empregado doméstico é simplesmente um luxo que a maioria não tem como pagar. O resultado é que a maioria das famílias se prepara para uma vida onde mesmo professores universitários são vistos lavando roupas, cozinhando e preparando o lanche dos filhos antes de levá-los para a escola.

Se nessas conversas eu tivesse contado que no Brasil existe um mecanismo chamado “elevador de serviço”, destinado ao uso quase exclusivo dos empregados domésticos, aí é que teria me visto em dificuldades para explicar o que isto representa. Em minhas aulas de Geografia na Universidade Estadual do Norte Fluminense eu sempre faço uma pergunta à qual nenhum estudante até hoje conseguiu responder: o que é que existe no Brasil e que não existiu nem no sul segregacionista dos EUA ou na África do Sul dos tempos da apartheid? A resposta deveria ser óbvia, mas não é: entrada de serviço. Neste caso, me lembro sempre com algum humor, o fato de ter morado num prédio em que o elevador social ficou quebrado por mais de seis meses, o que obrigou a encontros matinais e de final de tarde que claramente constrangiam tanto “patrões” como “empregados”. Durante todo aquele tempo eu me divertia sozinho vendo a cara de constrangimento que meus vizinhos patrões mostravam dentro do elevador lotado de trabalhadores domésticos, inclusive os seus. O interessante é que eu também percebia o incômodo que a minha presença causava quando eu era o único patrão dentro de um grupo de empregados que tentavam chegar ao apartamento onde trabalhavam. Eu me sentia um verdadeiro intruso do elevador de serviço.

Mas voltemos ao “x” da questão, os direitos concedidos pela nova legislação. Como eu mesmo uso o serviço de uma empregada doméstica, pus-me a fazer os cálculos de quanto isso me custará a mais, e verifiquei que o único acréscimo que terei tem a ver com o pagamento do FGTS. É que em relação a todas as outras “novidades”, eu já as vinha cumprindo por espontânea vontade. Aliás, se fosse aplicar a legislação ao pé da letra, eu talvez tivesse direito a pedir mais horas de trabalho, visto que nunca exigi o cumprimento do limite máximo de horas.

Para encerrar compartilho uma história. Certa vez convidei Cícero Guedes, o líder do MST que foi assassinado nas terras da antiga Usina Cambahyba, para almoçar em minha casa. Ao sentarmo-nos à mesa, ele me perguntou por que eu nunca havia dito que era casado, quando lhe respondi que era realmente solteiro. Aí ele perguntou quem era então a pessoa que almoçava conosco, e eu lhe respondi que era a minha “secretária doméstica”. A cara de estupefação de Cícero mostrou bem como lhe parecia impensável que um “patrão”, mesmo um professor da Uenf, pudesse aceitar o pueril ato de sentar e almoçar junto com quem havia preparado a comida. Coincidência ou não, depois desse dia, Cícero começou a me tratar com um tipo de cortesia que eu nunca havia sentido dele. A única explicação que encontrei para essa mudança é que eu finalmente havia conquistado o seu respeito por praticar algo que não deveria ser exceção, mas regra. Mas, convenhamos, quem poderia condená-lo por pensar daquela forma?