Um retrato afetivo de Marighella
Documentário sobre Carlos Marighella procura resgatar as várias facetas do homem que morreu lutando para que o país incorporasse, como cidadãos de fato, o povo pobre e desassistido
Por Amilton Pinheiro | Fotos Rafael Cusato e Divulgação
CINEMA
Muitas são as histórias que a diretora Isa Grispum guarda do seu tio postiço Carlos Marighella (1911-1969), marido de sua tia Clara Charf. "As minhas lembranças de infância ficaram povoadas pelas visitas deles em casa. A visita daquele homem negro, alto e forte era motivo de muita alegria, apesar de sua presença tão cheia de autoridade e mistério, aos olhos de uma menina. "Eu adorava o fato de ele ser negro, mestiço. Brincávamos muito em relação à diferença de cor de nossa pele. Eu falava que queria ser negra como ele. Ele olhava para mim e dizia ´Toma bastante chocolate, Isinha, que você, quem sabe, fica preta`", relembra.
A memória afetiva daquele homem norteia grande parte do documentário Marighella, que Isa realizou e que chegará aos cinemas entre maio e junho. A diretora cresceu com essas imagens de infância, que de alguma maneira colocou no seu filme, utilizando fotos da família, trechos de filmes relacionados à época em que Marighella viveu, depoimentos de intelectuais e pessoas que tiveram contato ou que ouviram falar dele.
25 ANOS DEPOIS
O projeto do documentário sobre Marighella foi realizado em 1986, quando o roteiro foi apresentado e aprovado por uma lei da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Com a lei estadual em mãos, Isa Grispum foi atrás de patrocínio. "Não consegui captar um único tostão. Era uma época difícil e um tema mais difícil ainda. Passei muito tempo com o projeto engavetado. Sem perspectivas de viabilizá-lo, fui fazer outras coisas", explica. Nesse meio tempo, Isa trabalhou 10 anos com o antropólogo e educador Darcy Ribeiro (1922-1997). Foi uma época de muito aprendizado, que ela reconhece, hoje, que ajudou no encadeamento de seu documentário, dando-lhe uma pegada antropológica e social.
Mesmo trabalhando em coisas que davam muito prazer, Isa não esquecia o projeto de resgatar a história do seu "tio" Marighella e prestar uma homenagem a sua tia Clara, que estava envelhecendo e era a pessoa que mais o conheceu. Além disso, estava se aproximando o centenário de nascimento de Marighella, um momento apropriado para retomar o projeto. Depois de algumas parcerias, finalmente Isa conseguiu terminar o filme no ano passado. "Fazer esse filme foi uma coisa terapêutica", revela.
TELEVISÃO
FAMÍLIA DE OPERÁRIO
Os pais de Marighella: Augusto Marighella e Maria Rita do Nascimento
Nascido em 5 de dezembro de 1911, Carlos Marighella cresceu numa das inúmeras famílias pobres de Salvador. Seu pai, Augusto Marighella, um operário que imigrou da Itália para o Brasil, , casou com uma negra, Maria Rita do Nascimento, descendente de sudaneses. Ele observava que, dentre os seus 8 filhos, o menino Carlos era o que mais tinha pendor para os estudos. Não tendo dinheiro para bancar os estudos de todos eles, Augusto passou a incentivar apenas o do menino, na esperança de ter um filho formado e com um futuro mais seguro. O pai comprava jornais e passava para o filho ler. Além disso, escondia algumas velas para que o menino pudesse estudar até mais tarde. Os sacrifícios foram finalmente compensados. Marighella, já adulto, foi cursar engenharia civil. Mas seu senso de justiça social e inconformismo falaram mais alto e ele abandonou o curso por não se sentir bem em estudar, enquanto muitas crianças tinham que trabalhar desde cedo para ajudar no sustento de suas famílias.
Nascia o homem militante e ligado ao Partido Comunista. A cidade de Salvador não mais comportava sua indignação e suas lutas. O sudeste foi o caminho natural para esse novo homem politizado.
"MARIGHELLA, JÁ ADULTO, FOI CURSAR ENGENHARIA CIVIL. MAS SEU SENSO DE JUSTIÇA SOCIAL E INCONFORMISMO FIZERAM COM ELE ABANDONASSE O CURSO, POR NÃO SE SENTIR BEM EM ESTUDAR, ENQUANTO MUITAS CRIANÇAS TINHAM QUE TRABALHAR DESDE CEDO PARA AJUDAR NO SUSTENTO DE SUAS FAMÍLIAS"
BRUTALIDADE X GENTILEZA
A diretora Isa Grispum
Marighella já havia sido preso em Salvador, por criticar o interventor da Bahia, na época, Juracy Magalhães. No sudeste outras prisões viriam. Foi no Estado Novo do presidente Getúlio Vargas que ele sofreu as piores atrocidades na cadeia. Numa dessas prisões, em 1939, foi sistematicamente torturado Arrancaram-lhe alguns dentes, colocaram estiletes sob suas unhas, queimaram as solas de seus pés com maçarico e bateram nele sem dó. Ele resistiu a tudo. Veio, então, a fama do homem que a nada cedia, um bloco monolítico. Isa lembra que seu tio carregava uma capanga que ele deixava em cima da estante. Ela olhava para aquele objeto e ficava imaginando o que teria ali. "Ele chegava lá em casa e colocava a capanga de plástico horrorosa no alto da estante para que a gente não pudesse mexer. Eu sempre tive uma curiosidade sinistra para saber o que tinha ali que não podia acessar. Minha tia Clara me disse, anos depois, que eram um barbeador elétrico, uma arma e um cápsula de cianureto. Ele tinha passado pelas piores torturas na cadeia e dizia que, se o prendessem novamente, ele não seria mais torturado. Certamente tomaria cianureto." Toda essa brutalidade sofrida nos porões das cadeias não fez de Marighella um homem incapaz de demonstrar seus sentimentos. Ele adorava o carnaval (algumas vezes se fantasiava para sair e pular os quatro dias de folia), gostava de Jackson do Pandeiro e de uma cervejinha. Todos os depoentes do documentário falam desse homem gentil que adorava crianças e livros. "Impressionante que todos que dão depoimento no filme, em algum momento, ou choram ou ficam emocionados ao falar do homem Marighella. Mas cortei esses trechos da edição final, não queria ir por esse lado fácil. Deixei apenas o choro da minha tia Clara, porque não havia como tirar dali. Era um choro que ficou calado por muitos anos", esclarece a diretora.
COMISSÃO DA VERDADE
Uma Comissão irá investigar todos os crimes cometidos depois do Estado Novo até o governo militar, mesmo que não possa criminalizar os culpados, por causa da Anistia de 1979, que perdoou os crimes e excessos, tanto dos que foram para a luta armada, quanto dos que tiveram que coibi-la. Frei Betto, que foi torturado juntamente com alguns outros dominicanos de sua Congregação durante a ditadura militar, disse que a Comissão da Verdade do Governo Federal só teria de fato efeito se colocasse a palavra "Justiça", depois da palavra "Verdade". Seria, então, Comissão da Verdade e Justiça, pois só assim ela teria legitimidade para punir criminalmente os culpados de torturas e mortes. "O aparelhamento do Estado sempre foi violento. E toda essa violência atingiu os mais pobres e os que lutaram por um estado de direito, por um país mais justo. Enquanto não se esclarecer e punir os culpados dessas inúmeras violências, o Estado brasileiro vai continuar cometendo barbaridades e torturando as pessoas." Sobre o assunto, Isa Grispum revelou que preferiu tirar da edição final do documentário todos os trechos em que os depoentes falam das torturas que sofreram. "Eu tive descrições de tortura da maioria dos depoentes, principalmente das mulheres. Todas elas passaram por atrocidades dentro da prisão, inclusive sexuais. As mulheres tinham que ficar nuas nas celas à disposição dos guardas, na hora que eles quisessem. Eram depoimentos muito fortes, que preferi tirar da edição, pois não me interessa julgar e nem saber dos detalhes de torturas. O que queria era construir uma figura desconhecida e tão interessante que era Marighella", esclarece a diretora sobre sua decisão.
TELEVISÃO
TROFÉU DO REGIME ASSASSINO
Esse material valiosíssimo, que não entrou na edição final do documentário sobre Marighella, estará nos extras quando o filme for lançado em DVD. Quem sabe possa servir, de alguma forma, para a Comissão da Verdade do Governo Federal. Os depoimentos eram tão pesados que toda a equipe do filme ia às lágrimas, revela a diretora. "A minha equipe, na sua maioria, era formada de jovens que não sabiam o que tinha sido os anos de ditadura no Brasil e as torturas nos seus porões. Teve dia que todos, inclusive eu, íamos almoçar e ninguém conseguia tocar na comida.
Voltávamos para as filmagens e chorávamos todos em comunhão." A decisão da diretora em não colocar esses depoimentos no filme é compreensível, pois ela queria retratar o homem por detrás do mito, que entrou para história como um facínora pelo regime militar, e que nunca foi devidamente revelado.
Depois de assassianado por 30 policiais do Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo, chefiado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, numa emboscada por volta das 8 horas da noite do dia 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, o guerrilheiro Marighella foi usado durante anos como espécie de troféu pelo regime militar. Os policiais que o mataram, juntamente com Fleury, tiraram vários fotos dele crivado de balas dentro de um fusca. Essas imagens foram usadas à exaustão durante muito tempo nos jornais, revistas e nos noticiários de televisão. A esposa de Marighella, Clara Charf, lembra com muita emoção daquele dia. "Estávamos em casa esperando por ele, quando ouvimos pelo rádio que Marighella tinha sido morto numa emboscada na Alameda Casa Branca. Eu me levantei e fui chorar num quarto. Como um homem tão bom, que passou toda sua vida lutando por um Brasil mais justo para o seu povo menos favorecido, pôde ser morto de uma forma tão violenta? Lembro do seu sorriso afável que sempre me alertava para que eu tivesse cuidado quando fosse às ruas. Ele dizia: `Clara, não fique rindo à toa, pois seu sorriso é muito expressivo e alguém pode desconfiar de você`. Vivíamos na clandestinidade, e ele sempre se preocupava comigo. Não somente comigo, mas com todas as pessoas que viviam ao seu lado."
UMA MULHER EXTRAORDINÁRIA
Livro lançado em 2005, foi coordenado por Clara Charf
Clara Charf, quando conheceu Marighella, já era militante: lutou contra a bomba atômica, participou de várias passeatas em defesa da paz e lutou arduamente contra o Golpe Militar de 1964. Hoje, aos 87 anos, é uma mulher ainda incansável na defesa de causas humanitárias. Em 2005, coordenou o livro Brasileiras - Guerreiras da paz, Projeto 1000 Mulheres, que foi lançado pela editora Contexto. Ela recebeu a reportagem da RAÇA BRASIL em seu apartamento, que fica numa rua tranquila do Bom Retiro, em São Paulo.
A conversa só não foi totalmente agradável por causa das lembranças tristes do marido morto. Em diversas ocasiões, Clara chorou ao lembrar de Marighella, principalmente do dia de sua morte, 4 de novembro de 1969. "Tivemos que conviver com os noticiários eufóricos, celebrando a morte de Marighella. As manchetes de jornais e revistas e o noticiário estamparam durante semanas as fotos do meu marido morto dentro de um carro, todo ensanguentado. Foi difícil conviver com tudo aquilo e nada poder falar. Lembro de ter ficado desnorteada, sem chão durante semanas. Ele representava muito não só como meu marido, mas como um homem de convicções e de visão do país."
Com a morte do marido, Clara foi viver no exílio em Cuba (passou 10 anos por lá, só voltando depois da Anistia de 1979), com medo do que poderia acontecer com sua vida. "Quando vivia na clandestinidade com Marighella, apesar do medo e das constantes ameaças, conseguia suportar tudo aquilo; ele me dava segurança, e eu admirava muito as causas pelas quais lutávamos." De volta ao Brasil, teve de continuar em silêncio, pois mesmo depois da Anistia, o nome de Mariguela continuava a ser um assunto carregado de significados negativos.
"TIVEMOS QUE CONVIVER COM OS NOTICIÁRIOS EUFÓRICOS, CELEBRANDO A MORTE DE MARIGHELLA. AS MANCHETES DE JORNAIS E REVISTAS E O NOTICIÁRIO ESTAMPARAM DURANTE SEMANAS AS FOTOS DO MEU MARIDO MORTO DENTRO DE UM CARRO, TODO ENSANGUENTADO. FOI DIFÍCIL CONVIVER COM TUDO AQUILO E NADA PODER FALAR"
Clara Charf se acostumou a viver na clandestinidade e a sofrer todo o tipo de perseguição, inclusive psicológica, junto com o homem que escolheu para casar (precisou fugir para poder se casar com Marighella, pois sua família judia não aceitava aquela união com um homem negro, comunista e ateu). Diante de tudo que passou, Clara conservou o otimismo em relação ao país. Inteligente, lúcida e com um belo sorriso afável, ela nos ensina que vale a pena ainda acreditar, mesmo que não tenhamos mais fé. O depoimento do ex-presidente Lula para o filme de Isa Grispum, que não entrou na edição final do documentário, sintetiza um pouco essa mulher extraordinária. "Se a Clara não tive nascido, ela tinha que ter sido criada."