Por Pedro Alexandre Sanches | Ultrapop
Mano Brown foi ríspido com Lobão. “Ele pregava a ética e rebeldia, age como uma puta para vender livro”, afirmou o rapper em sua conta de Twitter, comentando uma das inúmeras afirmações grosseiras do roqueiro na Folha de São Paulo de ontem, de que “os Racionais MC’s são o braço armado do governo”.
Duas visões simetricamente opostas de mundo estão guardadas no fundo dessas manifestações. Os Racionais ergueram uma história robusta a partir da periferia paulistana, em contato íntimo e direto com a população sensível à sua arte, sem suporte de gravadora multinacional e recusando conscientemente qualquer contato institucional com veículos de comunicação como Globo, Folha,Veja etc.
Lobão tem sido, ao longo de várias décadas, o rebelde midiático por excelência. Periodicamente, abre o berreiro sobre todo e qualquer assunto (menos, em geral, sua própria música e literatura). O passo seguinte, em processo circular de autovitimização, é choramingar que ninguém deu ouvidos aos mais recentes rocks, MPBs, sambas ou ensaios literários que produziu.
Já estive na “grande” mídia (dez anos fazendo jornalismo musical na Folha) e vivo fora dela há quase dez anos. Nunca entrevistei Mano Brown, mesmo sendo grande admirador dele e apesar de ter tentado inúmeras vezes. Por outro lado, perdi a conta do número de entrevistas que fiz com Lobão, por quem tenho afeição e em quem vejo um homem dócil e cordial, atrás da boca sempre arreganhada para morder nas oportunidades midiáticas.
Brown foi na ferida ao situar Lobão como uma “puta" que passa o chapéu para "vender livro". É o que muita gente já percebeu após anos e anos e anos de desgaste: Lobão segue sempre o mesmo script, quando chega a hora de mercadejar o trabalho da hora. Vai para a Folha e rasga o verbo, devidamente intermediado por um jornalismo tão passivo-agressivo quanto seu querido personagem. Ambas as partes saem felizes e sorridentes do encontro supostamente tenso: Lobão vende mais livros (ou discos), e a Folha ganha mais 15 minutos de repercussão após dolorosos meses, talvez anos, sem conseguir impactar positivamente seu rebanho de leitores (aqueles que ainda consegue conservar à custa de toneladas de conservadorismo editorial).
Lobão não tem, nem de longe, o poder que Brown possui de encantar multidões olho-no-olho. Repetidas vezes, precisa da mídia – do intermediário – para simular uma efêmera lua-de-mel com sua corte de fãs. Esses, a exemplo do próprio ídolo, costumam ser bem mais dóceis quando, por acidente, se encontram cara-a-cara com "inimigos" de carne e osso.
Lembro-me de mim mesmo, nos anos 1990, saindo em êxtase de uma entrevista com o autor de "Decadence avec Élegance" (1985), com apenas um pensamento na cabeça: “Essa matéria vai ficar sensacional!”. O tempo passou para mim e leio Lobão em 2013 enquanto imagino a empolgação do rapaz atual da Folha com a quantidade chocante de tacanhez pseudopolítica cuspida por Lobão no ato de lançamento de um livro waltdisneymente denominado Manifesto do Nada na Terra do Nunca(ainda não tive oportunidade de ler, ao contrário de colegas da Folha e da Globo).
Fico triste de pensar que Lobão me adorava quando eu trabalhava na Folha e passou a me detestar (ou fingir que detesta) quando passeio semianônimo pelo Twitter. Mas sei que é menos por meus defeitos (ou qualidades) que pelo fato de eu, jornalista, não ter mais o efeito midiático que eu podia proporcionar a ele quando divulgava sua verborreia e suas batalhas quixotescas contra a indústria musical. Macambúzio, observo que anos atrás Lobão militava pela numeração de CDs, mas hoje, depois que se tornou apresentador de TV na MTV e na Bandeirantes, não proferiu mais xingos públicos contra, por exemplo, o Ecad, o órgão ditatorial que “administra” os direitos autorais no Brasil, em grande medida com a missão de enviar remessas de lucro para o Primeiro Mundo. Folha, MTV e Band são a mídia, a antiga "grande" mídia. Eu, ex-chapa do Lobão, sou apenas um rapaz latino-americano que não tem mais "grandes" alto-falantes.
Não vou gastar meu tempo e minha paciência comentando o lixo que o ex-Lobão passou a despejar no bestiário político, obviamente inspirado (ou será que soprado?) por garatujas passivo-agressivos ex-petistas como Reinaldo Azevedo. Há um assunto muito mais importante escondido atrás dessa treta, e esse nos traz de volta ao embate direto (embora mediado por papel e internet) entre o sempre passivo-agressivo Lobão e um Mano Brown infelizmente mais agressivo que o habitual.
Em tempo: me assusto com a ameaça de porrada física por parte do Brown, embora veja Lobão cobiçando perigosamente a violência, quando desdenha do estrago causado pela ditadura civil-militar (apoiada e sustentada, entre muitas outras empresas, pelo jornal que mais aprecia lhe dar palanque) ou quando acusa uma mulher torturada de torturadora. No espelho, Lobão deve saber tudo sobre síndrome de Estocolmo, não sabe?
Mas deixa eu voltar ao que é de fato importante. O autor de "O Rock Errou" (1986) xingou o autor de "Racistas Otários" (1992) de “braço armado do governo”, “braço armado do PT”. Não me veem à cabeça imagens recentes (ou não recentes) de nenhum dos Racionais portando qualquer arma que não fosse sua verve poética e musical. Quando Lobão afirma que um grupo de negros periféricos de São Paulo é “braço armado” de qualquer coisa, está escancaradamente associando “bandidagem” com os notórios “quatro pês”. Pobre, preto, puta e petista são, para esses efeitos (também copiados à risca de mamãe-mídia), inevitáveis "bandidos" prontos a profanar a alma pura da playboyzada do circuito Ipanema-Leblon-Morumbi-etc. Brown teve a presença de espírito de mirar um dos “pês” no espelho e cravar no lobão bobão a pecha de “puta”. E sim, Lobão, você é racista.
Cito, para terminar, a maldição de Caetano Veloso, de que você já deve ter ouvido falar. Era uma brincadeira (algo séria, algo preconceituosa) recorrente, de que tudo em que o vaidosíssimo Caetano tocava virava pó. Midas ao contrário, ele cantava com Ritchie ou com o RPM, por exemplo, e os caras paravam imediatamente de fazer sucesso. Talvez fosse, sei lá, um jeito vampiresco do autor de "O Leãozinho" (1977), de jamais se deixar superar pelos competidores que nunca param de aparecer.
Os tempos são outros, mas eis que um resquício modificado da maldição de Caetano ressuscita afigurado nos rugidos do cão Lobão. Bastou o bocudo (Caetano, não o lobo) afirmar numa música que “Lobão Tem Razão” (2009), e o dito cujo se divorciou imediata e dramaticamente da dita cuja. Angústia da influência perde de lavada.
Pode parecer contraditório (afinal, o discípulo torto não goteja de desprezo pelo boquirroto Caetanão?), mas eis aqui para nós um exercício formoso de lógica. Meninão chorão de mama-mídia, o ex-Lobão parece ter aprendido tudo com ela, em anos recentes, sobre como se divorciar aos chutes e pontapés da opinião pública – por absoluta incapacidade de compreender as transformações por que ela passa, desconfio.
Ao puxar saco em 2013 dos mesmos milicos e fardados que o atiraram na prisão em 1987 (e que detestam tudo que os Racionais representam), o vociferador cospe na cara do público mais à esquerda que sempre o adorou. É rigorosamente a mesma coisa que seu jornal adotivo faz já há alguns anos: meter um pontapé nos fundilhos de quem lhe dá de comer.
Nesse caso bisonho, quem está perdendo (inclusive o bonde da história) não é o público, mas sim a velha mídia e seu meninão mimadão de estimação. Lobão, este sim um paradoxo entristecedor, sobreviveu ao ocaso da era das gravadoras que governavam nossos gostos musicais a ferro e fogo, mas veio cair de bocarra ao chão no crepúsculo da época dos jornais-policiais-vigias que pensam (ainda) controlar as opiniões alheias. O desarranjo intelectual de Lobão é menos dele próprio que importado e papagueado dos barões da mídia que lhe empresta o trombetão, ou melhor, a trombetinha.