Ações e declarações recentes da PM-RJ parecem ser reflexo de uma política de "vale tudo contra o vandalismo" do governador
por José Antonio Lima
Yasuyoshi Chiba / AFP
Policiais militares se protegem de bomba incendiária jogada por um manifestante nas cercanias do Palácio da Guanabara, na segunda-feira 22. O fotógrafo responsável por esta foto foi posteriormente agredido por um policial.
A ânsia de Sergio Cabral (PMDB) de fazer seu sucessor no governo do Estado e contemplar aquela parte da população que aplaude o Bope quando este metralha traficantes no Complexo do Alemão está levando o Rio de Janeiro para um caminho perigoso. Atos e declarações recentes de Cabral têm revelado uma faceta despótica do governador e, aparentemente, servido como licença para a Polícia Militar expandir para os bairros mais ricos da capital fluminense o autoritarismo que emprega nas favelas.
Após o quebra-quebra da semana passada no Leblon, o metro quadrado mais caro do Brasil, Cabral diagnosticou o problema do vandalismo no Rio de Janeiro como fazem os ditadores árabes – colocando a culpa em “organizações internacionais”. Como ocorre no Oriente Médio, atribuir a violência ao estrangeiro não é um simples erro de diagnóstico. É um artifício para isentar seu próprio governo de qualquer responsabilidade pelo que está ocorrendo.
No mesmo discurso, feito na sexta-feira passada, Cabral prometeu uma “resposta à sociedade”. A resposta viria por meio da Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em Manifestações Públicas. A chamada CEIV foi criada em 19 de julho, por meio do decreto 44.302, publicado no Diário Oficial do Estado na segunda-feira 22. O texto que cria a comissão (confira a íntegra do decreto, em PDF) tem contornos autoritários alarmantes.
No artigo 3º, Cabral determina que todas “solicitações e determinações da CEIV” têm “prioridade absoluta” sobre qualquer outro pedido encaminhado a órgãos públicos e privados. Em parágrafo único, Cabral obriga empresas de telefonia e provedores de internet a atender os pedidos da CEIV em um “prazo máximo de 24 horas”. Não fica claro se questões como a segurança do papa Francisco ou um problema em um hospital, por exemplo, serão deixados de lado em detrimento do combate ao vandalismo, ou se as empresas de telefonia/internet têm direito de recorrer das determinações da CEIV.
Mais preocupante é o artigo 2º da criação da comissão. Segundo o decreto, a CEIV pode “tomar todas as providências necessárias à realização da investigação da prática de atos de vandalismo, podendo requisitar informações, realizar diligências e praticar quaisquer atos necessários à instrução de procedimentos criminais com a finalidade de punição de atos ilícitos praticados no âmbito de manifestações públicas”. Este texto, como lembrou Bernardo Santoro no blog Instituto Liberal, abre margem para qualquer coisa, por não esclarecer quais são “todas as providências necessárias”. Pode a CEIV decretar prisões, fazer grampos ilegais e torturar os suspeitos, por exemplo?
Na melhor das hipóteses, o texto é um desastre provocado pela pressa e pela falta de conhecimento de quem o escreveu. Na pior, é reflexo de um clima, insuflado pelo governo do Rio, de “vale tudo contra o vandalismo”.
Reflexos deste clima têm sido observados. Na sexta-feira, o jornal O Globo publicou uma entrevista com o sociólogo Paulo Baía, na qual ele comentou o quebra-quebra no Leblon. “A polícia viu o crime acontecendo e não agiu. O recado da polícia foi o seguinte: agora eu vou dar porrada em todo mundo”, disse Baía. Na própria sexta-feira, o sociólogo sofreu um sequestro relâmpago no Aterro do Flamengo. “No carro, me deram o recado e não falaram mais nada. Disseram para eu não dar mais nenhuma entrevista como a de hoje no Globo e para que eu não falasse mais nada da PM, porque, se eu falasse, seria a última entrevista que eu daria na vida”, disse Baía.
Na noite de segunda-feira 22, nos protestos após o início da visita do papa Francisco, a arbitrariedade foi vista novamente. Yasuyoshi Chiba, fotógrafo japonês da agência de notícias AFP, foi agredido por policial enquanto fazia imagens do protesto. Dois integrantes do grupo Mídia Ninja, que ficou famoso em junho por fazer coberturas ao vivo das manifestações, foram detidos. Por meio de seu perfil oficial no Twitter, a PM do Rio afirmou que “foram presos por incitar a violência dois manifestantes que transmitiam ao vivo as manifestações”. Em depoimento publicado no Facebook, um deles, Filipe Peçanha, disse ter sido agredido e detido simplesmente por fazer seu trabalho. Os dois foram soltos logo em seguida, graças à rápida ação de integrantes da OAB-RJ, que estavam nas manifestações justamente para conter a arbitrariedade da PM.
Também por meio de sua conta no Twitter, cujo tom se assemelha ao de uma pessoa raivosa, a PM acusou a OAB-RJ de “prejudicar” seu trabalho nas manifestações. É tragicômico que uma instituição de segurança pública enxergue o trabalho de advogados como prejudicial, mas não é estranho em se tratando da PM. Duas horas depois de criticar a OAB, a PM-RJ, também pelo Twitter, afirmou que “democracia e liberdade de expressão não estão no lado de quem tenta crackear ou posta dados pessoais de agentes da Lei”. Ocorre que, ao contrário do que diz a PM, até mesmo quem viola a lei tem certas proteções garantidas numa democracia. Este é justamente um dos fatores que diferencia a democracia do autoritarismo.
Imagens e relatos de segunda-feira dão conta de que alguns poucos manifestantes, com pedras e bombas incendiárias, deram início à violência. É difícil verificar tal acusação, mas não seria exatamente uma novidade, pois episódios semelhantes ocorreram com certa frequência não apenas no Rio de Janeiro, mas em outras cidades brasileiras nas manifestações de junho. O que a Polícia Militar não consegue entender, no entanto, é que dela se espera uma ação com parcimônia, ainda que seja extremamente difícil identificar elementos criminosos dentro de uma multidão. Culpar por associação deveria ser a última alternativa adotada por uma instituição repleta de trabalhadores honestos que convivem diariamente com criminosos, responsáveis por delitos muito mais graves que vandalismo, como assassinatos (desde os “ocorridos em combate”, como na Favela da Maré, até o da juíza Patrícia Acioli).
Como se sabe, autoritarismo e arbitrariedade não são características exclusivas da PM do Rio de Janeiro. São a praxe de uma instituição arcaica, responsável por atrocidades Brasil afora e que só continua existindo por conta de uma combinação nefasta entre a covardia dos governantes e o apoio de parte da população que não é afetada pela violência policial. A novidade no caso do Rio de Janeiro é que, por meio da CEIV, Cabral decidiu institucionalizar a arbitrariedade da PM como prática de segurança pública.