Ditadura matou 1.196 camponeses, mas Estado só reconhece 29
Financiada pelo latifúndio, a ditadura “terceirizou” prisões, torturas, mortes e desaparecimentos forçados de camponeses que se insurgiram contra o regime e contra as péssimas condições de trabalho no campo brasileiro. O resultado disso é uma enorme dificuldade de se comprovar a responsabilidade do Estado pelos crimes: 97,6% dos camponeses mortos e desparecidos na ditadura militar foram alijados da justiça de transição. “É uma exclusão brutal”, afirma o coordenador do Projeto Memória e Verdade da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência, Gilney Viana, autor de estudo inédito sobre o tema.
O estudo revela que pelo menos 1.196 camponeses e apoiadores foram mortos ou desaparecidos do período pré-ditadura ao final da transição democrática (1961-1988). Entretanto, os familiares de apenas 51 dessas vítimas requereram reparações à Comissão de Anistia. E, destes, somente os de 29 tiveram seus direitos reconhecidos. Justamente os dos 29 que, além de camponeses, exerceram uma militância político-partidária forte, o que foi determinante para que fossem reconhecidos como anistiados. “Os camponeses também têm direito à memória, à verdade e à reparação”, defende Viana.
Segundo ele, dentre as 1.196 mortos e desaparecidos no campo, o estudo conseguiu reunir informações sobre 602 novos casos excluídos da justiça de transição, suficientes para caracterizá-los como “graves atentados aos direitos humanos”. Esta caracterização é condição primordial para que sejam investigados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV). Segundo Gilney, o objetivo é alterar o quadro atual e permitir que essas vítimas usufruam dos mesmos direitos dos militantes urbanos, estabelecidos pela Lei 9.140, de 4/12/1995, que reconheceu como mortos 136 desaparecidos e criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), com mandato para reconhecer outros casos e promover reparações aos familiares que assim o requererem.
As novas vítimas que poderão entrar para a lista oficial de mortos e desaparecidos políticos do país são 75 sindicalistas, 14 advogados, sete religiosos, 463 lideranças de lutas coletivas e 43 trabalhadores que tombaram em conflitos individuais. “Os dados revelam a ponta de um iceberg de um conjunto bem amplo de perseguidos políticos pela ditadura militar até agora pouco estudado”, acrescenta Viana.
Terceirização dos crimes
Destes 602 casos, em apenas 25% é possível comprovar a efetivação de inquérito policial e, somente em 5%, desfecho judicial. Ainda assim, o estudo conseguiu comprovar a ação direta de agentes de estado em 131 casos, o que facilita o reconhecimento deles como vítimas da ditadura. O problema é que em 471, ou 85% dos casos, as evidências apontam para o fato de que os crimes foram cometidos por agentes privados, ainda que sob a anuência dos representantes da ditadura.
“O Estado se omitiu, encobertou e terceirizou a repressão política e social no campo, executada por jagunços, pistoleiros, capangas e capatazes, a serviço de alguns fazendeiros, madeireiros, empresas rurais, grileiros e senhores de engenhos, castanhais e seringais. Esta hipótese explicativa principal é compatível com o papel importante que a classe dos latifundiários, fazendeiros, senhores de engenho, castanhais e seringais tiveram no golpe, na sustentação da ditadura e na coligação de forças políticas que fizeram a transição”, diz o estudo.
Apesar da dificuldade, Viana avalia que a CNV tem poderes para incluí-los no escopo de investigados. Segundo ele, o Art. 1º da Resolução nº 2, de 20/8, define que caberá ao órgão “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas (...) por agentes públicos, pessoas a seu serviço, com apoio ou no interesse do Estado”. “Isso incluiu os crimes realizados pelos agentes do latifúndio em concurso com os da ditadura”, observa.
Comissão Camponesa
Embora o estudo da SDH tenha sido concluído, as mortes e desaparecimentos dos demais camponeses já identificados pelo órgão continuarão sendo apuradas, agora pela Comissão Camponesa pela Anistia, Memória, Verdade e Justiça, criada durante o Encontro Unitário, que reuniu, em agosto deste ano, em Brasília, 37 entidades de camponeses, trabalhadores e militantes dos direitos humanos.
No documento final do encontro, as entidades assumiram o compromisso de “lutar pelo reconhecimento da responsabilidade do Estado sobre a morte e desaparecimento forçado de camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus familiares, com a criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e justiça para incidir nos trabalhos da Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, visando a inclusão de todos afetados pela repressão”.
A Comissão, que conta com o apoio da SDH, já se reuniu duas vezes para definir os eixos de luta, buscando, inclusive, conhecer a experiência na reparação de camponeses pelas comissões da verdade de outros países. “Nos encontramos, por exemplo, com o ativista Eduardo Gonzalez, que foi membro da Comissão da Verdade do Peru, onde muitos camponeses foram reconhecidos como vítimas da ditadura”, conta Viana.
A Comissão Camponesa já se reuniu também com membros da CNV, em especial a psicanalista Maria Rita Kehl, responsável pelo grupo de investigação dos crimes cometidos pela ditadura contra os camponeses.