Violência em crescimento de espiral revela os limites da política de (in) segurança pública do Estado brasileiro
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado orginalmente no www.somosassim.com.br/pedlowski
Por algum tempo a população carioca viveu sob uma intensa propaganda dos meios de comunicação e da assessoria de imprensa do governo do Rio de Janeiro, que procurava vender a impressão de que a pílula dourada da segurança pública havia sido (finalmente!) encontrada. Assim foi que, sob a égide das chamadas “Unidades de Polícia Pacificadora”, as celebradas UPPs, operações espetaculosas se seguiram no mesmo ritmo frenético das necessidades eleitorais de Sérgio Cabral e seu grupo político. E, convenhamos, a tática deu tão certo que Cabral conseguiu se reeleger em primeiro turno, mesmo sendo um dos governadores mais ausentes de que se tem registro na história do Rio de Janeiro.
As evidências de que as UPPs acabaram causando mais mal do que bem foram surgindo aos poucos, mas, graças a uma enorme blindagem de uma imprensa cuja fidelidade canina vem sendo garantida por generosas verbas publicitárias, a população carioca foi mantida ignorante sobre o aumento da violência contra a maioria pobre da cidade supostamente maravilhosa. O choque final de realidade ocorreu recentemente na Favela da Chatuba, localizada no município de Mesquita, na Baixada Fluminense, quando um grupo de traficantes “julgou” e massacrou um grupo de seis jovens. E qual o crime que levou a essa pena capital? O fato de um dos jovens trazer no telefone celular um funk “proibidão” de uma facção rival do tráfico de drogas. Esse massacre revelou algo que já se sabia faz tempo, qual seja o fato de que as UPPs nada mais fizeram senão obrigar uma migração dos traficantes das regiões mais centrais para áreas periféricas da região metropolitana do Rio de Janeiro. O mais trágico da situação é que a Secretaria Estadual de Segurança Pública já possuía dados sobre essa migração para a Favela da Chatuba e nada fez para combater os traficantes que se transferiram para lá, oriundos das áreas “pacificadas” da capital fluminense.
No entanto, o que está acontecendo no Rio de Janeiro não é exceção, e sim regra em termos da violência que assola as regiões pobres das cidades brasileiras. Uma simples análise das notícias dos principais jornais brasileiros vai mostrar que todos os dias massacres estão sendo cometidos, onde invariavelmente a maioria dos mortos são homens jovens e negros. Aliás, quando a coisa se refere a mortes associadas à ação policial, São Paulo é atualmente o principal centro de extermínio realizado pelo Estado brasileiro. Em um artigo recente no Jornal Folha de São Paulo, a psicanalista e jornalista Maria Rita Kiehl, que é um dos membros da chamada Comissão Nacional da Verdade, apontou para o fato de que o discurso do governador José Geraldo Alckmin (PSDB) traz claras reminiscências do período do regime militar no tocante a justificar casos em que a Polícia Militar assassina um grande número de pessoas. O fato é que invariavelmente tais casos são justificados através dos sombrios “autos de resistência seguida de morte” que foram tão amplamente utilizados pela ditadura de 1964 para justificar o assassinato de oponentes do regime. A questão mais crucial é que, mesmo após quase três décadas do final do regime militar, continuamos vivendo sob a sombra de uma política de (in) segurança pública que traz paralelos irrefutáveis com a política de guerra de baixa intensidade que os norte-americanos utilizaram na Guerra do Vietnã.
E aqui não há como deixar de apontar algo que deveria ser mais corajosamente enfrentado, caso queiramos realmente ter uma política de segurança que tenha um mínimo de chance de ser democrática: o fato de que até hoje os assassinos e torturadores que atuaram durante o regime militar permaneçam impunes permite que seus métodos continuem guiando as práticas cotidianas de muitos servidores que deveriam estar nas ruas para proteger os cidadãos brasileiros, independente da cor da sua pele ou de sua condição financeira. Isto fica ainda mais evidente nas próprias estatísticas policiais, onde a pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink notou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois das ditaduras civil-militares que assolaram o nosso continente entre as décadas de 1960 e 1980. Esta talvez seja uma das heranças mais sinistras do regime dos generais, e que até hoje continua muito viva. Em outras palavras, quando o regime civil se negou a punir assassinos e torturadores, houve como que uma autorização tácita para que seus métodos continuassem sendo aplicados de forma ampla e impune em delegacias de polícia, presídios, e nas operações policiais que ocorrem diariamente nas favelas de todo o Brasil.
O maior engano que os membros das classes médias e altas podem cometer é achar que toda essa violência vai continuar eternamente contida nas regiões pobres. Cedo ou tarde a espiral de violência que assola as regiões pobres das cidades brasileiras vai transbordar as fronteiras da pobreza e chegar às áreas mais nobres. Se não houver logo uma reversão da ação do Estado, isto é apenas uma questão de tempo. Tic-tac-tic-tac...