Refastelando-se à beira do precipício
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado originalmente no site da Revista Somos Assim
A imprensa mundial divulgou, recentemente, uma notícia que deveria estar criando um grande alarde entre membros de governos e corporações. O objeto da matéria foi a comprovação de que a camada de gelo que cobre o Ártico encolheu em mais de 70% de seu tamanho normal. Este fenômeno oferece uma comprovação empírica do chamado “aquecimento global” que está provocando uma série de mudanças no clima da Terra. Estas mudanças estão, entre outras coisas, acelerando a ocorrência de fenômenos climáticos extremos, tais como secas, furacões, e chuvas intensas e localizadas. Mas, longe de criar o nível de alarme que a situação demanda, o que se viu de forma quase simultânea foi a celebração, por parte de empresas petrolíferas, da chance de acessar mais facilmente as grandes reservas de óleo que pensam existir no Polo Norte. Aliás, esse tipo de postura oportunista revela uma tendência à autodestruição, visto que o uso desenfreado de combustíveis fósseis é comprovadamente um dos principais responsáveis pelo derretimento das calotas polares.
Também, mas de maneira ainda mais discreta, apareceram as primeiras evidências científicas dos efeitos que a exposição prolongada a alimentos geneticamente modificados e que são cultivados de forma concomitante ao uso de agrotóxicos podem causar à saúde humana. Até hoje, a desconfiança relativa aos alimentos modificados geneticamente era contestada pela indústria sob o argumento de que não havia prova científica de que estes causavam qualquer dano à saúde e ao meio ambiente. Pois bem, agora um estudo científico de longa duração acaba de demonstrar exatamente isto. E qual foi a reação que se observou na maioria dos países, o Brasil incluso, onde organismos geneticamente modificados (OGMs) estão sendo usados de forma abundante? Absolutamente nenhuma. Aliás, muito pelo contrário. Aqui mesmo no Brasil há uma crescente pressão por parte dos representantes do latifúndio agroexportador para que sejam diminuídos os controles mínimos que existem na comercialização de OGMs e agrotóxicos, sob a desculpa de que precisamos manter a nossa competitividade nos mercados internacionais.
Esse tipo de descompasso existente entre as evidências científicas sobre danos que causam à saúde humana e ao meio ambiente, decorrentes do modelo de consumo urbano-industrial hegemônico, e o aprofundamento da sua utilização merece ser mais bem compreendido. Como podem governos e corporações se comportarem de forma tão alienada e descompromissada com o discurso oficial do “desenvolvimento sustentável”, mesmo em face às amplas evidências de que nos encaminhamos para um momento crítico da sobrevivência humana? Afinal, não haverá como conter o avanço das águas oceânicas sobre as principais cidades do mundo onde está concentrada a imensa maioria da população humana ou, tampouco, conter o avanço de doenças associadas ao consumo de alimentos alterados geneticamente.
A explicação pode parecer cruel e desumana, mas me parece que as elites do mundo persistem nestes modelos de autodestruição por terem sob seu controle uma série de salvaguardas que a maioria da Humanidade não tem e não poderá ter.
Esse tipo de racionalidade que guarda o melhor para poucos e o pior para muitos não é nova nas elites, mas certamente atinge escalas singulares dentro do sistema capitalista; isto ocorre em função dos avanços da tecnologia que é capaz de oferecer uma série de saídas para problemas que antes eram insolúveis. O problema para a maioria de nós é que todas essas soluções são caras e tampouco estão sendo desenvolvidas para serem de usufruto de toda a Humanidade, mas apenas para aquela parcela de bilionários que se dá ao luxo de gastar, numa noite de balada, algo que a maioria dos trabalhadores levará anos para obter com seus minguados salários.
O interessante é que, como já observara Charles Darwin, a história da evolução das espécies comprova que nem sempre os mais fortes foram os que conseguiram sobreviver a períodos de grandes mudanças, mas, sim, os mais capazes de se adaptar a elas. Se isto acabar acontecendo, o período que estamos atravessando poderá marcar um giro único nas relações entre a Humanidade e a Terra. Afinal de contas, está mais do que comprovado que os mais pobres e fracos são aqueles que, no limite da exclusão em que são colocados pelo sistema dominante, conseguem se adaptar e sobreviver melhor. Em outras palavras, quando o grosso das mudanças ambientais se manifestarem de forma ainda mais avassaladora sobre a Humanidade, é bem possível que a maioria dos que restarem venha das camadas que hoje são as mais excluídas.
Se estas previsões se confirmarem, é possível que tenhamos uma nova oportunidade de estabelecer uma relação mais harmoniosa entre a Humanidade e a Terra e, de quebra, entre os próprios seres humanos. Mas uma coisa é certa: não haverá mudança qualquer se esperarmos que as mudanças venham dos que hoje se refestelam com os artefatos de alienação obtidos no banquete desigual que é oferecido todos os dias pela sociedade capitalista. Destes, é mais lógico esperar que continuem saindo no tapa em filas gigantescas para comprar o último brinquedo digital lançado pela Apple ou pela Samsung.