sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Lei de greve para o funcionalismo público: o ovo da serpente



Por Mauro Iasi.


O governo da presidente Dilma, acossado e sem resposta ao funcionalismo púbico e greve, a não ser a intransigência e prepotência de quem escolheu direcionar o fundo público em auxílio ao capital privado em detrimento do setor público, resolveu tirar do armário o arsenal de projetos de lei que limitam o direito de greve.

Quando realizávamos os debates na época da elaboração da atual constituição, um jurista renomado aconselhava aos sindicalistas que a melhor redação era: “a greve é um direito”. Alertava-nos que qualquer detalhamento ou normatização seria, via de regra, uma manifestação dos interesses de cercear e limitar este direito e nunca viria em favor dos trabalhadores. Parece que tal conselho segue sábio e útil.

O que se alega é a necessidade de “disciplinar”, “normatizar” a utilização do recurso da greve em nome de defender os interesses da “sociedade”, daí os dispositivos indicados de restringir tal utilização em setores estratégicos, garantir o funcionamento mínimo de serviços essenciais, limitação do exercício do direito em “épocas de eventos internacionais”, a garantia de medidas de punição, como corte de ponto e substituição de servidores.

Em primeiro lugar é preciso que se diga que tais medidas, por trás do manto enganoso e ideológico da suposta “defesa da sociedade”, visam defender o governo e por trás dele os interesses de classe que representa da reação dos funcionários públicos à desastrosa política implementada de reforma do Estado e de desmonte de serviços públicos. A onda de greves que vivenciamos tem suas raízes não na intolerância de funcionários dispostos a abusar do direito de greve para garantir mesquinhos interesses corporativos, pelo contrário, é a reação esperada de um setor que em sua maioria (guardadas honradas exceções) deu um voto de confiança ao governo e foi ludibriado.

A raiz das greves que presenciamos pode ser encontrada no adiamento injustificável do estabelecimento de uma data base para o funcionalismo, no não cumprimento da promessa de reajustes anuais que corrigiriam a inflação e do fracasso da mesa permanente de negociação que deveria ser um canal de negociação permanente do governo com os diferentes setores do funcionalismo. A Secretaria de Relações do Trabalho vinculada ao Ministério do Planejamento e Gestão especializou-se nas manobras protelatórias, engodos e escaramuças cuja única finalidade foi retardar o atendimento das demandas apresentadas, como, por exemplo, a reestruturação das carreiras, o enfretamento de distorções salariais e a mera implantação de diretos adquiridos.

O que nos espanta não é a força e o vigor da greve que vimos em 2012, mas porque ela não ocorreu antes. De um lado, no caso de muitos setores do funcionalismo, vimos a boa vontade e a aceitação da tese governista que se estaria arrumando a casa através de uma macro política econômica combinada com uma reforma do Estado que, garantindo um suposto e mítico crescimento econômico sustentável, levaria na sequência a uma valorização do serviço público. Essa “boa vontade” foi operada com o apassivamento de representações sindicais através de métodos diretos e indiretos de cooptação que foram desde a participação direta no governo, passando pelo atendimento de demandas burocráticas no caso das centrais sindicais, até a liberação de recursos no balcão de projetos e verbas das diferentes áreas do governo.

Não devemos menosprezar a estratégia do governo no sentido de criar uma diferenciação profunda no governo entre carreiras que considerava de estado e de ações e serviços que o governo implantou formas severas de terceirização e precarização, dividindo o setor púbico.

No entanto, a eficácia de tais medidas encontrou seu limite no agudizar da crise do capital e do desmoronar do sonho de um capitalismo regulado e sustentável. A crise cobra do governo a liberação do fundo público para salvar o capital e os funcionários públicos se vem diante de uma resposta que suas demandas serão novamente adiadas. Quando a economia cresce os funcionários tem que dar a sua cota de sacrifício para manter a política de superávits primários e estabilizar a economia para que ela continue crescendo, quando entra em crise tem que ser sacrificados para que a economia privada não caia tanto.

Com medo de estabelecer uma data base e os ajustes anuais o governo operou com o calendário orçamentário, o que lhe permitiu negociar em separado com os diferentes setores do funcionalismo, dividindo para reinar como os velhos romanos, e chantageando com as amarras orçamentárias e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Este ano o tiro saiu pela culatra e o calendário orçamentário virou a data base unificada do funcionalismo. Puxados pela greve nacional dos professores universitários, os demais setores, inclusive organizados pelo sindicalismo governista, não tiveram outra forma de pressão que não a greve para enfrentar a intransigência do governo.

Diante do movimento legítimo dos funcionários o governo, ao contrário do que seria sensato, ou sejam, negociar, resolveu manter a arrogância, não recebeu as entidades, de fato não negociou, o que foi decisivo para que algumas greves se mantivessem por tanto tempo. Os professores, por exemplo, entraram em greve em 17 de maio e só foram recebidos no dia 13 de julho para depois de duas rodadas de uma farsa de negociação o governo encerrar a farsa assinando um suposto acordo com uma entidade que com dificuldade dizia representar cinco das ciquenta e nove IFES em greve.

Como resolver este problema? Negociando com entidades realmente representativas, cedendo no que for possível, reconhecendo que a dimensão do movimento é proporcional à protelação e adiamento injustificável no atendimento das demandas que se acumularam? Não, o governo resolve enfrentar a questão da forma como os governos autoritários agem: cerceando o direito de greve!

A raiz de todo autoritarismo pode ser encontrada no medo que os governantes que representam interesses de uma minoria tem de seu povo. A verdadeira universalidade por traz destas medidas temerárias que se anunciam não pode ser encontrada no recurso de evocar os abstratos “interesses da maioria da sociedade”, pelo contrário. Trata-se de uma universalidade particularista tornada possível diante de uma suposta ameaça que vem daqueles que lutam e resistem na defesa de seus direitos. Como nos ensinou Leandro Konder ao tratar da ideologia de direita:

O próprio sistema em cuja defesa as classes dominantes se acumpliciam – um sistema que gravita em torno da competição pelo lucro privado – impede que as forças sociais em que consiste a direita sejam profundamente solidárias: elas só se unem para os objetivos limitados da luta contra o inimigo comum(Leandro Konder, Introdução ao Fascismo, 2009, São Paulo, Expressão Popular, pg. 28).

No caso presente o inimigo comum somos nós que lutamos, através dos meios democráticos conquistados – como o direito de greve – na defesa das demandas mais elementares como salários, condições de trabalho e carreira. Não é a defesa da sociedade, mas a garantia para que o governo a serviço do capital siga seu trabalho e que o capital tenha as condições de continuar acumulando, condições necessárias para restringir direitos, flexibilizar conquistas e precarizar a vida.

É preciso restringir o direito de greve para que o Brasil receba os eventos internacionais e seu mar de recursos para saciar a fome de lucro das grandes empreiteiras. Se o direito à moradia estiver no caminho, façamos como se tem feito nas remoções no Rio de Janeiro: removamos este obstáculo com retroescavadeiras acompanhadas por batalhões da polícia militar. Se o direito de propriedade estiver ameaçado, a justiça garante a remoção de milhares de famílias, como no Pinheiriho em São José dos Campos. É preciso remover obstáculos à ordem burguesa e seu afã de lucro – se no caminho estiverem alguns direitos, devem ser removidos.

Para defender a “sociedade”, ataquemos a sociedade; para garantir a “democracia”, vamos restringir a democracia. Não, estamos diante de algo muito mais simples de ser entendido: a lógica que beneficie uma parte bem pequena da sociedade, a burguesia e seus negócios, se choca com os interesses diretos daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. Para o bem da ordem os instrumentos da burguesia precisam ser glorificados e mantidos, como seu governo, enquanto os instrumentos dos trabalhadores precisam ser restringidos, como o direito de greve.

A formalidade democrática, cedo ou tarde, abre um paradoxo: ou os trabalhadores no exercício de direitos formais cobram a substancialidade de um novo patamar de direitos que digam respeito às suas reais demandas, ou o capital incomodado com tal possibilidade começa a cercear mesmo os direitos formais.

Mas os poderosos se enganam. Existe um elemento no direito que vai além da forma legal que por ventura o reveste. Houve um tempo em que a greve, assim como a organização sindical, era ilegal no Brasil – e nós fizemos greves e conquistamos o direito de ter nossas organizações sindicais. Eles que tornem a greve ilegal, isso não nos intimidará e nós faremos greves. Então que cassem nossas organizações e nós as reconstruiremos, contra a ordem e por cima das amarras das leis que tentarão em vão revestir nossos direitos.

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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, presidente da ADUFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.