A descentralização do Estado brasileiro e suas limitações: o lamentável exemplo do SUS
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 228 da Revista Somos Assim
O fim do regime militar instalado em 1964 colocou na ordem do dia a necessidade de descentralizar a gestão do Estado brasileiro. A expectativa dos defensores da descentralização era de que a transferência de determinados poderes a estados e municípios contribuiria para uma ação eficaz dos governos e, por tabela, ampliaria o controle social por parte da população sobre os ocupantes do poder. Esse novo conceito de governança foi consolidada a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 que trouxe vários dispositivos destinados a descentralizar uma série de funções que até então eram primazia do governo federal. Pouco mais de um quarto de século após a implantação de uma gestão descentralizadora do Estado, muitos se questionam se a desejada ampliação do controle social realmente ocorreu, e sobre quais seriam os benefícios objetivos que este processo trouxe à maioria da população.
Um dos casos mais salientes da descentralização foi o da Saúde cujo maior símbolo é o chamado Sistema Unificado de Saúde (SUS), fundado através da Lei Orgânica da Saúde (a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990). A criação do SUS, apesar de ter recebido críticas pontuais, foi saudada como uma transformação revolucionária na forma de atender as camadas populares, visto que estava orientado em uma série de princípios diretamente voltados para democratizar o acesso. Após sua consolidação, o SUS é hoje alvo de uma série de críticas, justamente naquilo que deveria ter sido o seu maior ganho, qual seja, a capacidade de garantir serviços de qualidade de uma forma rápida, eficaz e universal.
Apesar de não ser o único problema, o principal entrave em torno do SUS foi que a transferência de tarefas não foi seguida por um igual tratamento na alocação de recursos financeiros que permitissem a estados e municípios estabelecer um sistema de saúde próprio que fosse de qualidade. Além disso, o governo federal mantém um forte controle administrativo que acaba definindo como os recursos descentralizados deverão ser aplicados, diminuindo a autonomia dos demais entes federativos de estabelecerem suas próprias políticas para o setor. Para aumentar ainda mais as dificuldades para a efetiva aplicação dos princípios do SUS, os mecanismos de controle social jamais passaram de formalidades, pois a população pobre que compõe a massa de usuários somente é chamada a cumprir um papel figurativo nas instâncias de controle social. Na prática, a alocação e uso dos recursos transferidos pelo governo federal é decidida a portas fechadas pelos ocupantes do executivo, implicando numa partidarização da ação governamental.
Outro aspecto que parece ser importante no comprometimento da capacidade de estados e municípios de implementar o SUS são as altas taxas de corrupção que imperam nesses níveis de governo. Assim, volta e meia, explodem escândalos envolvendo a apropriação indébita de recursos descentralizados para o SUS. Um dos maiores exemplos deste tipo de crime foi o famigerado caso dos Sanguessugas, também conhecido como "Máfia das Ambulâncias", que veio a ser um rumoroso escândalo de corrupção que estourou em 2006 devido à descoberta de uma quadrilha que tinha como objetivo desviar dinheiro na compra de ambulâncias. Uma demonstração de como é difícil combater o desvio de recursos que deveriam estar sendo usados na ampliação do SUS é a persistência das máfias que roubam os recursos destinados à saúde. No caso dos Sanguessugas, o esquema teria sido iniciado na gestão do então Ministro José Serra e permaneceu em atividade nas gestões de Barjas Negri (ambos do governo de Fernando Henrique Cardoso), Saraiva Felipe e Humberto Costa (estes do governo Lula), que foi alertado em 2004 pela Controladoria Geral da União de que o esquema continuava funcionando.
Não bastassem a falta de controle social e a corrupção, um elemento pouco abordado é a falta da capacidade institucional, principalmente no âmbito dos municípios. E o pior é que a persistência da fragilidade institucional nem sempre decorre da falta de orçamento próprio, mas sim porque é nos municípios que ainda persiste o caráter mais explicito do patrimonialismo que tem marcado a ação das elites governantes brasileiras ao longo da nossa história. Esse patrimonialismo não apenas é contraditório com o processo de institucionalização, mas trabalha fortemente contra sua implementação. Neste sentido, a escolha da localização espacial das unidades e a lotação de pessoal normalmente obedecem prioridades dos grupos que estejam ocupando o poder executivo municipal, e não as necessidades da população.
E no meio do caos que esta mistura de fatores acaba criando é que as eventuais vantagens da descentralização acabam sendo desperdiçadas. Para piorar ainda mais o que já é ruim, as condições de trabalho dos profissionais da saúde também acaba caindo na vala comum do descaso. E aqui não se fala apenas das péssimas condições de trabalho ou dos salários aviltados. A verdade é que muitas vezes quando os órgãos de fiscalização decidem agir, a opção repressiva recai sobre aqueles que não detêm o poder político, pois é raro que governadores, prefeitos e secretários sejam presos por problemas que ocorrem dentro das unidades de saúde. Já as prisões de médicos e enfermeiros estão se tornando corriqueiras.