domingo, 29 de janeiro de 2012

O mundo vive uma crise de insegurança alimentar, que pode piorar se nada for feito para erradicar suas causas 

Marcos Pedlowski, artigo publicado no número 230 da Revista Somos Assim


Um relatório recente produzido de forma conjunta pelo Instituto para Agricultura e Políticas de Comércio e pelo Instituto de Desenvolvimento Global e Meio Ambiente da Tufts University deveria estar sendo lido por todos os que se preocupam com a segurança alimentar no mundo. Afinal, as informações que o relatório intitulado “Resolvendo a crise alimentar: avaliando as reformas das políticas globais” traz são bastante alarmantes. Uma primeira constatação é a de que o mundo está atravessando uma grave crise na oferta de alimentos, fundamentalmente por causa das políticas desastradas que continuam a ser produzidas pelos governos dos países mais ricos. Dito isto, é preciso enfatizar que a causa fundamental desta nova crise alimentar é a manutenção por parte dos países ricos de posições que privilegiam as necessidades das suas corporações em detrimento do direito humano básico à alimentação. 

O relatório assinado por Timothy Wise e Sophia Murphy destrincha de forma bastante aprofundada as diferentes variáveis que estão na raiz desta crise alimentar. O interessante é que entre um dos principais pilares da crise está algo que os brasileiros deveriam entender bem: segundo Wise e Murphy, há uma combinação nefasta entre baixo nível de investimento na agricultura familiar e uma dependência exagerada do plantio de monoculturas voltadas para exportação, sendo que muitas delas não são destinadas ao consumo humano, como no caso do uso de determinadas culturas para a produção de biocombustíveis. Além disso, a transformação de terras e dos alimentos produzidos nelas em simples commodities estaria causando uma elevação de preços que não tem nada a ver com a clássica relação entre oferta e demanda, mas sim com o processo especulativo. Para piorar a situação, a manifestação de eventos climáticos extremos, reflexo das mudanças climáticas globais, seria um elemento agudizador da dificuldade de se produzir alimentos. 

O interessante neste relatório são as soluções apresentadas, que também não deveriam ser novidade para nenhuma autoridade brasileira. Dentre as principais soluções propostas estariam a diminuição da concentração da terra através da reforma agrária e o apoio aos sistemas agrícolas orientados pela agroecologia. De quebra, haveria a necessidade de se impor medidas que diminuíssem o domínio da especulação financeira, tanto no controle da terra como do comércio de alimentos. Sem que estas medidas sejam adotadas, o prognóstico é claro: os preços dos alimentos vão se manter em patamares bastante altos por pelo menos uma década, com grandes chances de que haja um aprofundamento drástico da fome no mundo, a qual hoje atinge o já alarmante número de mais de 1 bilhão de pessoas. 

Uma conclusão central do documento é que os governos dos países em desenvolvimento irão ocupar um papel central na reversão desta crise. Mas para que este papel seja positivo, e aqui é uma reflexão pessoal e não dos autores do relatório, estes governos terão de aceitar suas próprias responsabilidades no que se refere ao aprofundamento da crise alimentar. No caso brasileiro, é evidente que o governo Dilma Rousseff fez uma aposta quase cega no latifúndio agro-exportador, o que levou a um abandono completo do programa federal de reforma agrária, tanto que apenas pouco mais de 5.000 famílias foram assentadas em 2011. Além disso, o governo brasileiro tem sido, no mínimo, relapso no combate à crescente invasão de corporações multinacionais que estão vindo para o nosso país para investir em aquisição de terras, seja para o plantio de culturas voltadas para a produção de biocombustíveis ou, simplesmente, para uso na especulação financeira. 

Para completar o processo de submissão a um modelo agrícola que não prioriza a segurança alimentar, nem dos brasileiros ou das populações dos países onde a fome é endêmica, o Brasil se tornou nos últimos anos o destino preferencial das empresas que produzem agrotóxicos e sementes geneticamente modificadas. O resultado desta situação de porteiras abertas para as corporações foi que recentemente o próprio governo dos Estados Unidos (o país que sedia as principais corporações do setor) ameaçou barrar as importações de suco de laranja produzido em território brasileiro devido sua contaminação pelo fungicida carbendazim que é proibido lá, mas usado amplamente por aqui. 

Muitos moradores das cidades, especialmente os mais ricos, podem até pensar que não tem nada a ver com esta situação, pois a oferta de alimentos parece estar assegurada nas gôndolas dos supermercados. Mas esta é uma sensação ilusória, e bastaria apenas fazermos uma memória de cálculo para ver que o custo da alimentação está em espiral de crescimento já há algum tempo. Além disso, como mostrou um estudo recente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o grau de contaminação por agrotóxicos já alcançou níveis alarmantes em muitos alimentos produzidos no Brasil. E como esta não é uma tendência passageira, como mostra a leitura do relatório aqui sendo analisado, seria prudente que se cobrasse dos diferentes níveis de governo que fosse dado o devido apoio à expansão da produção de alimentos, em vez de se desperdiçar fortunas com monoculturas. Do contrário, o cenário que se abre é um cenário inevitável de aumento da insegurança alimentar, do envenenamento por alimentos contaminados e da fome.