Marcos Pedlowski, artigo publicado inicialmente no site da Revista Somos Assim
O sal ocupa um lugar de destaque na sociedade humana desde a Antiguidade, e sua importância sempre ultrapassou seu valor culinário. Os romanos foram o primeiro povo a utilizar o sal em diversas formas, a começar pelo pagamento de suas tropas, que recebiam o “salarium argentum” de onde se originou a palavra “salário”, mas também como arma química, já que existem descrições de cidades que foram salgadas pelos romanos como forma de punir a resistência ao avanço do seu império. Na história do Brasil Colônia há a famosa passagem em que Dona Maria I (a louca) ordenou não apenas que os despojos do corpo de Tiradentes fossem salgados e espalhados para coibir a disseminação das ideias independentistas, mas, também repetiu o feito dos romanos e mandou salgar o terreno que abrigava a casa dele para que ali nada mais crescesse. Como se vê, o uso do sal já vem há muito tempo extrapolando os seus valores culinários, se mostrando bastante útil também para os conquistadores tentarem inocular o medo e o desânimo nos corações dos povos conquistados.
Olhando em retrospectiva, creio que ninguém iria imaginar que em pleno Século XXI, dentro de um país que possui uma série de leis relativas ao controle da qualidade da água, estivéssemos defrontados com um caso tão crítico de contaminação salina que ameaça a sustentabilidade ecológica e a vida de milhares de famílias, e tudo isto em nome do chamado desenvolvimento econômico. Ainda que as personagens envolvidas nos tragam reminiscências de uma época onde a vontade dos poderosos era a vontade absoluta, convenhamos que o que estamos presenciando no V Distrito de São João da Barra é tão singular que muitos ainda não entenderam bem o fenômeno com que estamos defrontados. Como alguns devem recordar, no segundo semestre de 2012, a Revista Somos Assim (uma publicação cuja audiência fica restrita quase exclusivamente ao município de Campos dos Goytacazes) trouxe a público dados que comprovavam que as obras do Complexo Portuário do Açu, de responsabilidade do Grupo EBX cujo proprietário majoritário é o bilionário Eike Batista, havia causado um sério processo de contaminação das águas superficiais no V Distrito de São João da Barra. As evidências para isto foram obtidas por pesquisadores ligados ao Laboratório de Ciências Ambientais da Universidade Estadual do Norte Fluminense que, a partir de denúncias dos moradores, decidiram realizar um amplo processo de coleta de dados, que após análise acabou confirmando a ocorrência do fenômeno.
As primeiras reações não tardaram a ocorrer, e vieram de dentro da Prefeitura Municipal de São João da Barra. Mas ao contrário do que mandava o senso comum, a reação não foi a de oferecer compromisso para avaliar a gravidade das denúncias. Aliás, muito pelo contrário. O que se viu foram manifestações lançando dúvidas não apenas sobre a validade científica dos dados, mas também sobre as intenções dos pesquisadores que realizaram os estudos. De parte do Grupo EBX, as poucas manifestações feitas foram no sentido de negar a existência do fenômeno, e também de colocar em dúvida a qualidade científica dos dados. Já de parte do sempre serelepe secretário estadual de Meio Ambiente, Carlos Minc, que adora os holofotes, o que se viu foi um explicável silêncio.
Com o avançar das águas e da acumulação do sal, uma matéria bastante completa publicada pela Folha de São Paulo apareceu como um rastilho de sal, e finalmente colocou este grave fenômeno na pauta da imprensa nacional e internacional. Isto serviu para que tanto o governo do Rio de Janeiro como o Grupo EBX mostrassem uma aparente preocupação com algo que se tornou impossível de negar. Mas aí é que começam problemas ainda mais graves, visto que, na prática, a posição é de não fazer nada que coloque em xeque os interesses econômicos de Eike Batista e seus sócios estrangeiros, mesmo que isto venha a causar uma hecatombe ambiental com custos sociais imprevisíveis. Afinal, como já foi dito e repetido, o processo que está em curso no V Distrito é de gravidade extrema, pois, passados mais de 2.000 anos desde que os romanos puniam os seus inimigos com a salinização das terras, não há ainda tecnologia capaz de reverter este processo.
O pior de tudo é que existem ainda alguns incautos ou mal intencionados que querem abrigar tal disparate sob o manto do desenvolvimento econômico. Eu já li até gente pregando o velho adágio de que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Ora, quem diz isto não entende, ou finge não entender, que com sal, e mesmo com a natureza, não se brinca. E tampouco se pode ignorar tudo o que já se acumulou em termos de conhecimento sobre a imposição de formas de desenvolvimento que desrespeitam a sustentabilidade ecológica e os direitos das comunidades que são impactadas por determinados tipos de megaempreendimento, como no caso deste que está sendo imposto de forma neocolonial em São João da Barra. A questão é que a concentração dos prejuízos sociais e ambientais sobre quem não cria o problema acaba cedo ou tarde ocasionando custos sociais que vão muito além do horizonte imediato. E se o pior acontecer, que ninguém venha dizer que foi em nome de desenvolvimento. Afinal, os alarmes já foram mais do que soados.