Movimento cobra rapidez na investigação de morte de líder sem-terra e ganha apoio do governo e da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro
Vivian Virissimo,
de Campos dos Goytacazes (RJ)
Cícero Guedes, da coordenação estadual do MST e líder do acampanhamento
Luiz Maranhão, localizada em Campos de Goytacazes (RJ)
- Foto: Marcos Pedlowski
Cantorias, místicas e protestos marcaram o enterro do militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Cícero Guedes, no último dia 26. Autoridades, assentados e militantes sociais e políticos participaram do ato em homenagem à liderança assassinada em emboscada com doze tiros, na madrugada de sexta-feira, em Campos dos Goytacazes (RJ). “A cada companheiro tombado, nem um momento de silêncio, mas toda uma vida de luta”, bradavam os presentes sob forte emoção. Ele fazia parte da coordenação estadual do movimento e era líder do acampamento Luiz Maranhão, localizado no parque industrial da Usina Cambahyba, fazenda nacionalmente conhecida por ter servido para incineração de corpos de políticos mortos e torturados por agentes da ditadura civil-militar brasileira.
“O grande responsável pelo assassinato de Cícero é o latifúndio de Campos. O MST não vai abrir mão de fazer, todos os dias, a luta pela terra. É bom que todos saibam que o MST vai pressionar as autoridades e a polícia até o dia de colocar esses bandidos assassinos na cadeia. Tiraram a vida do Cícero, mas não vão nos amedrontar de organizar as famílias e ocupar os latifúndios improdutivos. Nós não vamos cruzar os braços e descansar até que não haja mais nenhum sem terra nessa cidade rica e de tantos trabalhadores miseráveis. Como o Cícero sempre dizia: ‘Rebeldia necessária pra fazer reforma agrária’”, defendeu Marina dos Santos, da coordenação estadual do MST.
Muito abalados pelas circunstâncias do crime, a companheira de Cícero, Maria Luciene e os filhos garantiram que vão continuar tocando o Sítio Brava Gente que sempre foi referência em agroecologia. O filho Getúlio garantiu que a luta de Cícero pela reforma agrária segue firme e forte. “O sonho dele era ajudar todos vocês. Ele morreu por uma causa que ele sempre acreditou. Se ele estivesse aqui tenho certeza que ele gritaria: ‘MST, a luta é pra valer’”, falou Getúlio, muito aplaudido. Do velório ao último momento, as músicas preferidas de Cícero foram cantadas tornando tudo ainda mais comovente. Para cobrar celeridade nas investigações, a ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário, designou o conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Wadih Damous, para acompanhar o caso. “A situação da disputa fundiária na região de Campos dos Goytacazes e São João da Barra tem sido agravada pela morosidade na tramitação de processo judiciais que envolvem imóveis considerados improdutivos e, portanto, passíveis de desapropriação para a reforma agrária”, criticou a ministra em nota. O representante da Ouvidoria Agrária Nacional, Marcelo Nicolau, encaminhou nesta segunda-feira (28) ofício ao delegado responsável pelo caso, Geraldo Assed, pedindo proteção às famílias, agilidade na investigação e se colocando à disposição para qualquer apoio que a Polícia Civil necessite.
O dirigente do MST Marcelo Durão participou também nesta segunda-feira (28) de uma reunião com a chefe da Polícia Civil, delegada Marta Rocha, na qual esteve presente o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol). “A delegada assumiu o compromisso de cobrar agilidade na apuração e investigação dos fatos o mais rápido possível”, informou Durão. Também presente no ato e no enterro de Cícero, Freixo garantiu apoio do mandato para o movimento de forma absoluta. “No Brasil, convivemos com o latifúndio, com a escravidão e a barbárie. Em homenagem a Cicero vamos seguir lutando pela reforma agrária e pela dignidade desse povo”, disse Freixo.
O ato político organizado pelo MST contou com a participação do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Carlos Guedes de Guedes. “Cícero é uma perda irreparável para a luta da reforma agrária. Em nome do ministro do Desenvolvimento Agrário, Pepe Vargas, e dos servidores públicos do Incra, garantimos que honraremos os compromissos que assumimos com o Cícero”, disse. A coordenadora regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Viviane Ramos, pediu que a reforma agrária entre na agenda política do governo. “Cícero teve que morrer para que Usina Cambahyba entrasse na agenda do governo. Esperamos que a reforma agrária seja tomada como política pública para garantir soberania alimentar, uma vez que são os camponeses que garantem 70% dos alimentos no Brasil”, denunciou.
História
A história de vida de Cícero impressiona. Pai de cinco filhos, o alagoano começou a trabalhar aos 8 anos como cortador de cana em situação análoga à escravidão. Para fugir das condições desumanas de sua terra natal, ele migra para o Rio de Janeiro mas, sem alternativas, volta ao canavial para trabalhar novamente em situação semelhante à escravidão. Cícero e sua família só conseguem se libertar dessa situação quando o MST começa a se organizar na região para ocupar a primeira fazenda improdutiva em 1996. Seis anos depois de viver embaixo da lona preta, ele garante seu lote de terra no maior assentamento do estado, o Zumbi dos Palmares. “Cícero foi vítima do trabalho escravo no nordeste do país e em Campos. Quando o movimento chega, ele se envolve na ocupação Zumbi dos Palmares. Mas depois ele vira um grande militante encampando a bandeira da reforma agrária para todos neste país. Solidário, ele queria terra para todos, não queria só para ele”, disse a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Ana Costa, do Comitê Popular de Erradicação do Trabalho Escravo, do qual Cícero também fazia parte.
Referência em agroecologia, Cícero extrapolava os limites do assentamento e compartilhava seus conhecimentos da lida com os professores e estudantes da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e da UFF. Não era raro ele participar de atividades na universidade, nem mesmo estudantes passarem as tardes conhecendo o assentamento e em especial a produção do seu pedaço de terra. “Se a universidade brasileira pretender ter o mínimo de papel transformador na realidade, ela tem que entender que fora dos caminhos formais há possibilidade de acumulação do conhecimento também e, muitas vezes, esse conhecimento se prova tão ou mais importante que o produzido na academia. Cícero era uma prova viva disso. Ele era uma pessoa inteligente, capaz de evoluir e causar evolução porque os estudantes que se aproximaram dele se beneficiaram muito e saíram pessoas mais conscientes do limite dos seus conhecimentos formais”, disse o professor do curso de Ciências Sociais da Uenf, Marcos Pedlowski.
Cícero acompanhava todas as áreas que estavam na luta pela terra na região de Campos. Ele atuava nos diversos assentamentos e era responsável pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) do governo federal. Na ocupação de Cambahyba, ele planejou todo o processo de organização das famílias. Cícero também era organizador e entusiasta das Feiras da Reforma Agrária do MST que acontecem no Largo da Carioca, no centro do Rio, com a venda de verduras e frutas livres de agrotóxicos. “Realizar mais feiras é um desafio e desafio é pra ser cumprido. Tudo pra nós é desafio, estamos acostumados com essa situação. Esse negócio de veneno é uma babaquice desses filhos da puta. O capitalismo é cruel e devasta tudo. Não tem esse negócio de remédio, é veneno mesmo e veneno mata”, dizia. O assassinato de Cícero repercutiu internacionalmente. O MST do Rio de Janeiro recebeu notas de solidariedade de partidos, organizações, movimentos e sindicatos de Moçambique, Espanha, México, Guatemala, Chile, Argentina, Costa Rica, entre outros.