domingo, 11 de novembro de 2012

SOFFIATI E O GOSTO SALGADO DO AÇU: ATOS I E II


Abaixo reproduzo dois artigos escritos pelo professor e ambientalista Aristides Soffiati, uma das vozes mais respeitadas na região norte fluminense no que se refere às reflexões sobre as agressões causadas pelo modelo hegemônico de produção econômico vigente no Brasil sobre ecossistemas naturais e as populações que mais dependem deles para sua sobrevivência.

A mensagem de Soffiati é poderosa porque é clara e contudente, apesar de seu tratamento altamente polido do ponto de vista intelectual.

Estas são leituras acima de tudo esclarecedoras e, deste modo, fundamentais para todos os que querem realmente entender o que anda acontecendo, no caso específico destes dois artigos, no V Distrito de São João da Barra.


O gosto salgado do Açu (I)

Sal não é um elemento estranho à formação geológica da planície fluviomarinha do norte-fluminense. Lembremos que o nível do mar começou a subir a partir de 10 mil anos passados e atingiu seu ápice, de acordo com estudos recentes, há 5.100 anos e invadiu a parte baixa do tabuleiro, formação geológica então existente onde hoje se situa a planície. Pouco a pouco, o mar foi recuando e o Rio Paraíba do Sul avançando. Uma planície aluvial foi construída. Por outro lado, o mesmo rio ajudou na construção de uma grande restinga que se estende em ambas as margens dele em seu curso final.

Consideráveis quantidades de sal ficaram retidas em camadas profundas da planície. Exemplo: no intuito de fornecer água potável para Ponta Grossa dos Fidalgos, a maior comunidade pesqueira da Lagoa Feia, o governo do Estado do Rio de Janeiro construiu uma caixa d’água que seria abastecida por água subterrânea. Em vez de abrir o poço primeiro para examinar a potabilidade da água, o governo o abriu depois de construída a caixa. Resultado: a água continha alto teor de sal. A solução foi captar água da lagoa e tratá-la.

A salinização se processou também pela superfície. Sal ficou retido na hipersalina Lagoa Salgada. A Lagoa Feia, originalmente, escoava por vários canais naturais que se reuniam e formavam o Rio Iguaçu. Como registram cartógrafos e naturalistas do passado, o Rio Iguaçu corria atrás do cômoro do Cabo de São Tomé até atingir o mar pela atual Barra da Lagoa do Açu. Aliás, a Lagoa do Açu foi o que restou do Rio Iguaçu.

Correndo em terreno muito baixo, este rio permitia que as marés avançassem por ele até a Lagoa de São Miguel, perto de Barra do Furado. Em grande parte, a salinidade das marés era diluída pelo aporte de água doce da Lagoa Feia e do Rio Paraíba do Sul. Este contribuía com água doce para o Iguaçu pelo Córrego do Cula e pelo chamado Rio Doce ou Água Preta. Um relatório de 1969, encomendado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento à empresa Gallioli de Engenharia, concluiu que a área entre o mar e o sul da Lagoa Feia se dividia em duas. Da linha costeira até metade do terreno, era notória a influência do sal. Daí para cima, a Lagoa Feia e principalmente a Lagoa de Dentro, associada à pri meira contribuíam muito para diminuir a salinidade.

No intento de incorporar (o DNOS usava o verbo “recuperar” para esta operação) as terras salinizadas, o órgão público federal canalizou o Rio Doce e cortou sua ligação com o Rio Iguaçu. Assim, foi aberto o Canal do Quitingute, que não tem ligação direta com o Paraíba do Sul, recebendo água dele pelo Canal Vila Abreu, que provém do Canal São Bento. Aproveitando o leito do Rio Iguaçu, o DNOS inverteu a direção das águas, fazendo-as verter em direção à Lagoa Feia. Para substituir o Iguaçu, o órgão abriu o Canal da Flecha, onde desemboca basicamente o Canal São Bento, que transporta água de vários outros canais, inclusive do Quitingute. Para impedir que a língua salina se alastrasse na planície fluviomarinha, o DNOS construiu um sistema em forma de ferradura junto à foz do Canal da Flecha.

Assim, só água doce poderia entrar no interior da “ferradura”. Os pescadores perderam uma rica área pesqueira entre o Canal da Flecha e a Lagoa do Lagamar. Como compensação pelo impacto das obras do complexo logístico de Barra do Furado, propus que se permitisse a penetração da língua salina até as Lagoas do Lagamar e de São Miguel. No entanto, a língua salina seria barrada, nas duas direções, para não se alastrar.

O importante é frisar que o DNOS desenvolveu um trabalho descomunal e gastou muito dinheiro para dessalinizar terras e conter o avanço da língua salina no trecho da planície do Paraíba do Sul contíguo ao mar. Agora, a implantação do Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu, do grupo EBX, coloca em risco os ecossistemas, a pesca e a agropecuária. Para elevar a restinga do Açu em torno de seis metros e numa imensa área, as empresas da EBX estão usando areia do mar para construir um aterro hidráulico. Esta areia provém da abertura de dois canais de dimensões colossais no fundo do mar: um para acesso a uma ilha-porto; outro para acesso a um estaleiro.

Nos estudos de impacto do estaleiro, consta que a areia retirada para a abertura dos canais será aproveitada para o aterro depois de passar por tratamento adequado. A meu ver, as duas operações causariam profundos impactos ambientais, mas o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) e os empreendedores se apressaram em garantir que os impactos seriam mitigados. Na audiência pública sobre o porto, ainda não se falava em distrito industrial. Agora, os empreendedores precisam de material para o aterro e estão usando a areia do mar para a obra no continente. A água que vem com ele escorre para o lençol freático e para canais e lagoas. O antigo Rio Água Doce talvez passe a se chamar Rio Água Salgada. Tenho mai s a falar, mas o espaço acabou. Até domingo que vem.


O gosto salgado do Açu (final)

Por duas vias, o sal ameaça a planície fluviomarinha de Paraíba do Sul, composta pela planície aluvial e pela maior restinga do Estado do Rio de Janeiro, esta popularmente chamada de Açu em virtude do grande empreendimento industrial-portuário que está se erguendo na parte meridional dela. A primeira via é o Rio Paraíba do Sul. Estudos defendem a tese de que o rio perdeu vazão líquida e sólida por causa do desmatamento de sua bacia, de barragens e, sobretudo, de captações de água e de transposições de bacia. Só a transposição para o Rio Guandu, a fim de fornecer água para consumo público da cidade do Rio de Janeiro, retira 160 m3 de 250 m3 por segundo, deixando ao rio apenas 90m3/s, tudo na média. Quase todos os municípios aninhados em suas margens faz captação para a agropecuária, indústria e abastecimento público. A água consumida nem sempre volta ao rio de origem no mesmo volume e, quando volta, vem maculada, em grande parte, pela poluição.

Ainda segundo estudos, o Rio Paraíba do Sul chega ao mar reduzido a 45% de sua vazão líquida e sólida original. Assim, rompido o equilíbrio entre rio e mar, este segundo parece estar produzindo a erosão da foz e ameaça avançar pela calha do rio. Durante as estiagens, tal ameaça aumenta. Embora sabedores dessas informações, os órgãos governamentais competentes autorizaram a captação de água no Paraíba do Sul pelo complexo do Açu. Segundo a Agência de Bacia do Paraíba do Sul (AGEVAP), considerando todos os usos das águas (agropecuária, indústria e saneamento) do rio, em 2020, a captação atingirá cerca de 105,69 m3/s. No “Relatório dos Impactos Socioambientais do Complexo Ind ustrial-Portuário do Açu”, observa a Associação dos Geógrafos Brasileiros que os cerca de 10% da captação previstos pelo complexo do Açu para 2020 corresponderão em torno de 20% de toda água consumida no rio. Isto significa que o complexo do Açu será o maior consumidor empresarial de água do Paraíba do Sul.

Deve-se levar em conta que a língua salina avança mais, no rio, quando sua vazão diminui durante as estiagens, como está acontecendo mais acentuadamente neste ano de 2012. É de se esperar que o complexo não diminua a quantidade captada no rio por ocasião da estiagem porque as empresas têm de operar durante o ano todo no mesmo ritmo. Assim, o complexo reduzirá a vazão do rio e poderá favorecer mais ainda o avanço do mar por sua calha. Mesmo o complexo corre o risco de captar água salinizada do Paraíba do Sul.

A segunda via está sendo percorrida diretamente pelo complexo do Açu. Trata-se da areia retirada do mar para elevar o piso da restinga, sobre o qual se pretende construir o distrito industrial. A água salgada que vem junto escorre horizontalmente para os canais e lagoas, notadamente para o Canal de Quitingute e para as Lagoas de Iquipari e do Veiga. Verticalmente, ela penetra no solo e alcança o lençol freático. Por cima, a água se torna salobra e pode alcançar o Canal da Flecha, passando pela Lagoa do Lagamar. Por baixo, ela contamina poços. Por cima, o aumento da salinidade compromete a fauna aquática e pode acarretar problemas graves para a pesca. Por cima e por baixo, a água salobra inviabiliza a água para consumo humano e animal, pois o tratamento convencional não suprime o sal. Além disso, a água salinizada usada para irrigação mata a lavoura.

Para o complexo do Açu, tanto faz água doce ou salobra, pois ele não usará o solo para cultivar plantas e criar gado, mas para a atividade industrial. Porém, como não existe atividade humana que dispense a água doce, o complexo tem duas alternativas: captar água no Paraíba do Sul ou no aquífero de Emboré, mediante poços profundos que ultrapassam o lençol freático salinizado. O aquífero é o pré-sal da água doce. No entanto, representantes do empreendimento têm afirmado enfaticamente que não tocarão no Emboré.

Resta, assim, o Paraíba do Sul. Todavia, a captação neste rio pode se tornar inviável em função da própria demanda do grande empreendimento, sobretudo durante as estiagens, como muito bem alertou a limnóloga Marina Suzuki, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, em parecer redigido por solicitação do Ministério Público Federal. Assim, resta ao complexo do Açu, salvo melhor juízo, dessalinizar a água o captá-la no aquífero Emboré. Para a pesca, a lavoura, a pecuária e o consumo humano, a salinização pelas duas vias é uma perspectiva a ser muito bem considerada. Mesmo que o megalomaníaco empreendimento se comprometa a dessalinizar água para todos aqueles que vivem em seu entorno ou at é mais distante, não se justifica a salinização de terras e águas, como se fosse arma de guerra para combater a vida.

Posso estar enganado – e sempre levo em conta esta possibilidade –, mas, na dúvida, não se deve ultrapassar o veículo à nossa frente, como preconiza uma regra de ouro do trânsito. As pessoas direta ou indiretamente ameaçadas, o Instituto Estadual do Ambiente, os Comitês da Bacia do Rio Paraíba do Sul e da Região Hidrográfica IX e os Ministérios Públicos Estadual e Federal devem estar atentos para esta ameaça.