O desabamento no centro do Rio e o massacre do Pinheirinho: duas facetas da eficiência seletiva do Estado brasileiro
Marcos Pedlowski, artigo publicado no número 231 da Revista Somos Assim
A maioria dos brasileiros está hoje convencida de que os nossos principais problemas como Nação decorrem da ineficiência do aparelho que controla o funcionamento do Estado brasileiro. Fernando Collor foi um dos artífices deste convencimento quando, ao final da década de 1980, introduziu suas propostas de minimização do Estado, supostamente para aumentar a sua eficiência. Passados vários governos, e apesar de algumas mudanças pontuais na forma com que os servidores são vistos, a propalada ineficiência do setor público, que seria agravada pela tendência de corrupção, é usada para explicar os mais variados escândalos e catástrofes que chegam às manchetes. Certamente nadando na contra-corrente da ideologia dominante, afirmo que o aparelho de Estado brasileiro é extremamente eficiente e célere. O problema é que eficiência e celeridade não são qualidades estendidas à maioria da população, já que os pobres sobrevivem desprovidos de requisitos básicos de uma cidadania plena.
Mas se alguém duvidar desta eficiência, que olhe para o escandaloso caso que ocorreu há pouco em São José dos Campos, quando quase duas mil famílias foram sumariamente removidas de um terreno pertencente à massa falida do mega especulador Naji Nahas. Lá, a eficiência ficou por conta do uso de um avassalador aparato policial militar formado principalmente por membros do Batalhão de Choque contra um núcleo populacional formado por pessoas pobres, onde um número significativo era de idosos e crianças. E quem disse que o uso desproporcional da força foi eficiente não fui eu, mas sim as mais altas autoridades do executivo e do judiciário paulista, a começar pela juíza que ordenou a desocupação. E não há mesmo por que duvidar, visto que em menos de 24 horas, as mais de 6.000 pessoas que habitavam a Comunidade do Pinheirinho foram expulsas do terreno que ocupavam há quase uma década e colocadas em abrigos municipais, onde faltavam água, alimentos, remédios e banheiros. Como bem salientou o comandante responsável pela operação, a Polícia Militar havia cumprido eficientemente a função de remover as pessoas do terreno, restando à Prefeitura Municipal cuidar do resto. Mas até na hora de jogar milhares de famílias numa situação abjeta, a Prefeitura de São José dos Campos e as forças policiais foram extremamente eficientes, pois em mais de uma ocasião as famílias foram atacadas com bombas e cacetetes nos locais para haviam sido enviadas pelo governo municipal.
Se aparentemente a expulsão da Comunidade do Pinheirinho soar como algo distante e insignificante, podemos observar bem de perto a eficiência do aparelho de Estado na questão do desabamento ocorrido na área central da cidade do Rio de Janeiro: como atestam os telejornais, a Defesa Civil chegou ao local dos desabamentos em menos de 30 minutos; em menos de uma hora a área foi totalmente isolada, e o processo de busca pelos sobreviventes e dos corpos das vítimas fatais se iniciou com uma precisão britânica. É bem verdade que a coisa ficou um tanto confusa quando começou a se apurar quem havia autorizado as obras que ocorriam no Edifício Colombo, já que nenhum engenheiro responsável pelas mudanças sendo lá realizadas foi encontrado. Mas a eficiência da Prefeitura do Rio de Janeiro ficou salvaguardada quando foi demonstrada a inexistência de requisito legal para qualquer tipo de inspeção por parte de órgãos municipais em obras que ocorrem nas áreas internas de edifícios.
Mas, qual o saldo e o que demonstra a eficiência estatal nestes dois episódios tão distintos quanto similares? É que se olharmos a maioria das vítimas de ambos os casos, encontraremos pessoas pobres e trabalhadoras cujas vidas foram alteradas ou ceifadas porque estavam no ponto fraco da corda. Indo um pouco mais longe é possível afirmar que ambos os casos demonstram de maneira cabal que interesses privados, alguns de cunho inconfessável, estão guiando o que deve ser feito pelo Estado em nossas cidades, seja no centro ou na mais esquecida das periferias. O fato é que se não houvesse a omissão proposital do Estado em relação aos interesses dos trabalhadores, em nenhum dos eventos teríamos de ficar atônitos em frente aos aparelhos de televisão vendo cenas de caráter homérico sendo protagonizadas por forças policiais, as quais mesclavam atos de covardia e de heroísmo. Ainda que estes comportamentos sejam explicados pelos enredos aparentemente distintos que envolvem os dois casos sendo tratados, a verdade é que no lado perdedor estavam pessoas pobres e que precisam trabalhar para sobreviver.
Com a tendência recente à privatização total do Estado brasileiro para atender aos interesses privados de um número reduzido de indivíduos, é bem possível que estejamos vendo apenas a ponta do iceberg. E neste caso, a cidade do Rio de Janeiro tem tudo para ser o epicentro de novas catástrofes sociais, visto que ali o fenômeno das obras irregulares é quase tão epidêmico quanto as remoções forçadas ora sendo feitas para viabilizar os mega eventos esportivos que ocorrerão na cidade em 2014 (Copa do Mundo) e 2015 (Jogos Olímpicos). Nada a ver com ineficiência do Estado, mas sim com a predominância de uma eficiência seletiva.