Tragédia de verão anunciada: a farra da enchentes e a indústria do estado de emergência
Sergio Ricardo* |
Artigo escrito em 2007!
A última tragédia ambiental, no Rio Pombas, que afetou o Rio Paraíba do Sul e cidades do norte e noroeste fluminense, e a continuidade do vazamento do dique da Ingá, despejando metais pesados na baía de Sepetiba, este sem nenhum foco na mídia convencional, não só eram facilmente previsíveis, como também mais uma evidência de que providências óbvias deixam de ser tomadas por autoridades detentoras de responsabilidades no setor público no mínimo por irresponsabilidade social, chegando-se até à faixa dos interesses escusos.
Ninguém precisa de bola de cristal para prever que, na calamitosa situação ambiental do Rio de Janeiro, seja no que se refere a controle de encostas, abastecimento, poluição de recursos hídricos, a ocorrência de tragédias como do Rio Pomba, ou na serra de Friburgo não é uma possibilidade, é uma certeza, cuja existência só se torna possível devido a negligência continuada ou omissão criminosa.
É sabido que, em situações de calamidade pública, o poder publico é autorizado a contratar serviços sem qualquer licitação, para enfrentar a emergência. E, nos limites abissais da sordidez humana, sempre haverá alguém querendo se aproveitar de situações de sofrimento coletivo, para usufruir vantagens e lucros fáceis. A contratação emergencial de obras e compras através da dispensa de licitação, como temos visto a cada tragédia anual, embute risco palpável de mau uso de recursos públicos e malversação de verbas, além de excessiva pulverização na aplicação dos recursos em medidas e obras de pouca eficácia e reduzido retorno social e ambiental. A solução para isto é o controle social a ser exercido por conselhos municipais e comitês de bacias para fiscalização eficaz do uso destes recursos. Além disso, o Rio de Janeiro precisa ter um Plano de Prevenção e Controle das Enchentes, que por incrível que possa parecer nunca teve!
É preciso, de uma vez por todas, que a sociedade comece a exigir transparência nesses gastos emergenciais, para que sejam bloqueadas eventuais negociatas na sombra do poder público executadas por uma verdadeira máfia que, às vezes, até se diz verde.
Graças a um histórico de omissões e negligências, o Rio de Janeiro apresenta hoje, as seguintes vulnerabilidades ambientais:
A tragédia que se abate sobre o Rio de Janeiro tem a ver com a histórica má gestão dos recursos hídricos e do patrimônio ambiental, o que provoca, de forma sistemática, riscos de caráter geológico-geotécnico como escorregamentos, desabamentos de terreno, solapamento de margens de rios e córregos, enchentes, em geral relacionados à ocupação urbana, especialmente por habitações. Outra característica do território fluminense que o transforma em permanente área de risco é a Serra do Mar, onde há intervenções como estradas, dutos, linhas de transmissão, ocupações urbanas nas encostas, tornando-a suscetível a escorregamentos em vários trechos.
É imperiosa a formação de um Consórcio Inter-Estadual para elaborar e implantar, já em 2007, um Plano Emergencial de Prevenção e Controle das Enchentes, sob coordenação do Ministério da Integração Regional, já que os governos estaduais têm sido negligentes na adoção de medidas preventivas, mesmo sabendo que enchentes provocam estragos, prejuízos e mortes.
Em outro ponto do estado, na belíssima Costa Verde fluminense, as chuvas de janeiro alertam para a existência de graves riscos de desastres ambientais, como, por exemplo, na Baía de Sepetiba, em área vizinha ao Porto de Itaguaí. Ali, com as intensas chuvas, o dique da falida Companhia Ingá Mercantil está transbordando, derramando grande volume de metais pesados (cádmio, zinco, chumbo, arsênio etc). No pátio da empresa há uma montanha de lixo químico estimada em 2 a 3 milhões de toneladas de resíduos industriais altamente tóxicos, que vêm poluindo a Baía, com prejuízos à pesca e ao turismo.
Na Rodovia Rio-Santos (BR 101) há riscos de deslizamentos de encostas e barreiras no percurso da única rota de fuga das centrais nucleares de Angra 1 e 2. O Plano de Evacuação e Emergência é falho, superficial e inaplicável no que tange ao resgate da população em caso de acidente nuclear, que aponta a rodovia como principal corredor de saída. Além da contenção das encostas e do aparelhamento da rede de saúde há necessidade da duplicação da Rio-Santos, que ainda não saiu do papel.
Estão previstas até março grandes cheias na Baixada Fluminense e na periferia da cidade do Rio, incluindo a Zona Oeste (no Rio Catarino, em Realengo, houve 2 mortes na semana passada, fato que se repete a cada ano no período das cheias, e não teve qualquer repercussão na mídia). Com a continuidade das chuvas há risco de desabastecimento na capital devido ao aumento da turbidez e da poluição do Rio Guandu, que abastece 8 milhões de pessoas diariamente. A cada ano cerca de 3,5 milhões de pessoas são afetadas pelas enchentes no estado. Portanto, o Governo Federal deve liberar recursos apenas para investimentos que priorizem a gestão e planejamento por Bacias Hidrográficas. Cumpre ainda fazer com que os novos Planos Diretores Municipais sejam orientados pela gestão das águas, como forma de prevenir tragédias a cada verão. Urge, também, eliminar a possibilidade de contingenciamento (remanejamento) de verbas aprovadas no orçamento para áreas estratégicas como gestão de recursos hídricos e obras de prevenção/controle de enchentes, já que os prejuízos e mortes são contabilizados sob a desculpa das autoridades de que não há verbas suficientes para evitá-las.
Há uma verdadeira “farra das enchentes” ou “indústria das enchentes”, que é irmã siamesa e lembra a sórdida “indústria da seca” nos rincões do Nordeste brasileiro. Ela ocorre anualmente, impreterivelmente no início do verão, quando os sucessivos governadores fluminenses costumam cobrar publicamente a liberação de vultosas verbas emergenciais do governo federal para prestar socorro financeiro a municípios atingidos por chuvas fortes e suas conseqüências, como desabamentos, morte de pessoas, prejuízos enormes a todas as atividades econômicas. Somente nesta semana foi anunciada a liberação de um montante de R$ 150 a 200 milhões, em caráter emergencial, com a justificativa de se realizar obras urgentes e inadiáveis nas cidades afetadas pelas chuvas.
Ocorre que há uma série de urgências e “inadiabilidades” que, por serem previsíveis, devem constar de qualquer planejamento responsável de administração pública, preferencialmente submetido a exame, com transparência, por parte da sociedade e do povo.
Acima de tudo isto, o que hoje é uma grande ameaça mesmo à sobrevivência e preservação do patrimônio natural da Ilha Grande é o fato de ser um ecossistema intimamente ligado ao da Baía de Sepetiba, e como tal sujeito aos enormes riscos de poluição química em alto grau que poderá ocorrer se concretizar-se a dragagem de um canal em área contaminada por metais pesados para acesso ao terminal marítimo projetado pelo grupo alemão ThyssenKrupp em sociedade com a Vale do Rio Doce, e seu enterramento (bota-fora) no fundo do mar, como parte do projeto de construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico, em Itaguaí. Os metais pesados são oriundos do terreno da falida Companhia Ingá Mercantil, na Ilha da Madeira, de onde, há anos, vaza grande volume de lixo químico para a baía de Sepetiba. É contra isto que a população precisa mobilizar-se, para evitar o agravamento de uma tragédia ecológica de grandes proporções. Ou seja, o “paraíso ecológico” da ricalhada, onde passeiam com seus luxuosos e caros iates corre o risco de ser transformada numa lixeira industrial, com enormes prejuízos ao turismo, à pesca e ao meio ambiente, além da desvalorização dos belos imóveis construídos ao longo da orla marítima.
Diante destas ameaças -verdadeiras bombas relógios ativadas e prestes a explodir, vazar, derramar ou transbordar-, fica claro que é mais barato investir na prevenção e no controle do que buscar depois remediar, o que as autoridades públicas buscam fazer somente depois que tragédias anunciadas já aconteceram causando prejuízos incalculáveis e mortes como as que temos lamentavelmente presenciado a cada ano!
* Sérgio Ricardo de Lima é ambientalista e Gestor Ambiental, coordena o Fórum de Meio Ambiente da Baía de Sepetiba e é diretor da Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Mobilidade e Ambiente Brasil.