Vivendo em tempos inseguros: os pobres muito mais do que os outros
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 256 da Revista Somos Assim
A sensação de insegurança em que vive a maioria dos habitantes das cidades brasileiras vem justificando um fantástico crescimento da indústria da segurança privada que movimenta bilhões de reais anualmente. Dados oficiais indicam que atualmente existem cada vez mais pessoas trabalhando na segurança privada do que aquelas empregadas nas forças policiais mantidas pelo Estado. Um aspecto adicional aponta para o florescimento de serviços que são oferecidos de maneira informal, o que controla tanto os trabalhadores como os contratantes dentro de uma área cinza, onde não são raros os casos de abusos e exploração. Entretanto, na maior parte do tempo, a expansão dos serviços de segurança privada é justificada como um mal necessário frente ao crescimento da violência urbana. A aceitação deste padrão de segurança privatizada é tão grande que as milícias que atuam no Rio de Janeiro impondo pela força seus serviços de proteção foram até recentemente não só toleradas, como também abertamente cortejadas pelos governantes.
Na outra parte da segurança, aquela mantida pelo Estado, a exploração desta verdadeira fobia pelo outro também tem permitido a que os governantes justifiquem o aumento da presença das forças policiais em áreas pobres como outra pílula amarga que a sociedade brasileira precisa engolir em nome da tranquilidade social. Além disso, a persistência das mesmas políticas de segurança pública criadas durante o regime militar iniciado em 1964 é apresentada como necessária frente a uma suposta espiral de violência que estaria engolfando as cidades brasileiras. Um dos casos mais emblemáticos deste uso da visão de segurança herdada dos militares é a decantada política das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) que foram abundantemente propagandeadas como a panaceia para a questão da violência que assola milhões de habitantes do Rio de Janeiro. As UPPs foram tão bem vendidas para a população carioca que serviram para catapulpar a reeleição de Sérgio Cabral já em primeiro turno nas eleições de 2010.
Uma pergunta que raramente as pessoas se fazem é se a violência que efetivamente existe nas cidades brasileiras atinge igualmente a todos os seus habitantes; essa questão, que parece básica, dificilmente é tratada tanto pela mídia como pelos governos. No entanto, bastaria que se analisassem as estatísticas geradas pelas secretarias estaduais de segurança para notar o óbvio, qual seja, que a violência é fortemente concentrada nas regiões mais pobres das cidades. Assim, se tomarmos o exemplo da cidade do Rio de Janeiro, é muito provável que os índices de assassinatos que ocorrem em Ipanema sigam padrões dos países nórdicos, enquanto que nas comunidades que formam o Complexo do Alemão, o padrão equivalente só seja encontrado em países vivendo guerras civis como é o caso da Síria neste momento.
Além disso, o que as mesmas pessoas que aceitam a privatização da sua proteção pessoal, e com isto financiam a mercantilização da segurança pública, não gostam de admitir é que os principais alvos da violência urbana são homens jovens e negros. Esse elemento racial da violência é propositalmente omitido pelos chamados “experts” que são convocados para explicar operações policiais que acabam resultando em massacres. Aliás, as chacinas que ocorrem sob as mãos de agentes do Estado só merecem a devida atenção quando alguém membro das classes ricas é abatido, como foi o caso recente de um empresário paulista que ao ter seu celular confundido com um revólver, morreu crivado de balas. Do contrário, quando os mortos são jovens negros e pobres, a rubrica do auto de resistência, que foi criada pelos governos militares para justificar o extermínio dos seus opositores, é aceita sem qualquer questionamento.
O fato é que se os setores médios da população brasileira saíssem de sua cômoda indiferença frente aos claros excessos que são cometidos por agentes privados e públicos no interior de comunidades pobres em nome da tranquilidade social, talvez ficássemos mais próximos de realizar um debate fundamental relacionado à criação de um novo paradigma de segurança pública no Brasil. No entanto, para que isso ocorra teremos de começar a questionar a naturalização da violência contra os pobres. Aliás, nunca é demais lembrar que é exatamente essa naturalização que está por detrás da aceitação tácita do envio de tropas do exército para “pacificar” comunidades pobres, mesmo que isto incorra numa clara violação da Constituição Federal brasileira, como foi o caso da cidade do Rio de Janeiro.
O pior é que esta discussão talvez venha a ser dificultada com o agravamento da crise sistêmica que aflige o Capitalismo neste momento, pois as crises são péssimas conselheiras para os setores mais abastados, que tendem a se tornar ainda mais conservadores em suas práticas e costumes. Neste sentido, nunca é demais lembrar a atualidade quase profética do grande intelectual Josué de Castro quando dizia que segundo o nível da crise da economia capitalista em cada país, mais cedo ou mais tarde, ficaria difícil ver as nuances das classes sociais, porque “as sociedades estarão radicalmente divididas em apenas dois grupos de indivíduos: o dos que não comem e o dos que não dormem com medo dos que não comem". Será que já chegamos ao tempo do cumprimento desta profecia?