Crise econômica e alienação social: os verdadeiros ingredientes dos conflitos varrendo as cidades da Europa
A atual crise econômica que varre os Estados Unidos da América e parte da União Européia tende a ser visualizada pela maioria dos analistas a partir dos seus efeitos fiscais. Isto é quase inevitável já que a maioria dos governos tende a optar por medidas de arrocho, em vez de atacar a raiz do problema que é a desregulamentação dos mercados financeiros. Em que pese ser compreensível que as atenções estejam concentradas no campo econômico, dado que existem indicadores fáceis de ser usados e assimilados por todos os interessados, o fato é que existem outras dimensões igualmente importantes.
Um aspecto normalmente negligenciado é um invisível, mas poderoso elemento social, que é o sentimento de alienação daqueles que são alijados das soluções engendradas pelos governantes Esta alienação é um poderoso fermento para a ocorrência de graves conflitos, os quais podem ser disparados por eventos que normalmente não levariam a isto; vejamos o que anda acontecendo nos países europeus.
Quando a juventude grega enfrentou a polícia que tentava proteger o prédio onde o parlamento se preparava para votar as medidas de austeridade impostas pela União Européia, a maioria dos jornais tratou os eventos com desdém. Parecia que lá não estavam se mobilizando milhões de pessoas insatisfeitas por terem sido deixadas de fora, ou seja, alienadas, das decisões políticas. Passados os eventos gregos, uma situação muito parecida surgiu na Espanha durante as ultimas eleições ocorridas naquele país, onde milhares de jovens ocuparam as principais praças para protestar contra os altos níveis de desemprego causado pela crise econômica. Também ali, a maioria das análises ficou na superficialidade, e ignoraram os problema que representa a existência de milhões de jovens que não vêem um futuro pela frente.
No entanto, os eventos em diferentes pontos da Inglaterra é que parecem ter pegado a maioria dos analistas de surpresa. Afinal, a Inglaterra não está no olho do furacão financeiro que varre a União Européia ou, tampouco, a sociedade inglesa vive os mesmos níveis de violência que ocorrem em outras partes do velho continente. Talvez por isto, as primeiras análises (tanto à esquerda como à direita) foram na direção de que os distúrbios representavam atos de vandalismo causados por sentimentos consumistas. Afinal de contas, em muitas cidades os alvos preferenciais dos revoltosos foram lojas de marcas famosas e produtos eletrônicos.
Tais análises começaram a ser desconstruídas a partir da identificação dos envolvidos nos confrontos, e quando começaram a ouvir as razões da participação dos atos de violência. Em uma das matérias publicadas a partir dos relatos de jovens que participaram dos saques nas ruas de Londres, o jornal inglês Guardian apresentou relatos que evidenciaram que o problema era bem mais complexo. Segundo duas jovens ouvidas pelo Guardian, por exemplo, a razão para a sua ação era simplesmente mostrar aos ricos e à polícia que a juventude pobre é capaz de colocar em xeque o status quo político e econômico vigente. Tal afirmação parece ter sido entendida rapidamente pelas lideranças políticas inglesas, visto que o prefeito de Londres, Boris Johnson, veio a público alertar que as raízes dos conflitos são bem mais profundas e complexas do que uma simples propensão de setores da juventude inglesa ao vandalismo.
Outro que parece ter entendido que o problema é mais sério foi o primeiro ministro David Cameron, que propôs uma série de medidas punitivas que parecem mais ajustadas à Síria do ditador Bashar al Assad do que a um governo que se pretenda democrático. Entre as medidas adotadas, a realização de julgamentos em tempo recorde e a sinalização de suspensão do funcionamento das redes sociais em momentos de conflito. A face mais controversa destes julgamentos de exceção foi que duas crianças de onze anos que participaram dos distúrbios estavam entre os primeiros a serem levados às barras dos tribunais londrinos. Já a suspensão do funcionamento das redes sociais, se concretizada, deixará o aparato repressivo totalmente à vontade para agir, o que certamente o já citado Bashar al Assad sonharia poder fazer num momento em que seu país vivendo engolfado por uma guerra civil.
Há quase 60 anos, Josué de Castro já havia metaforizado, no seu “Geografia da Fome”, que no Brasil ninguém dormia: metade por causa da fome, e a outra metade por medo daqueles quem tinham fome; não podemos dizer que não fomos avisados. Assim, antes que alguém dê de ombros, já que o Brasil parece surfar na crise da “marolinha”, eu diria que o melhor seria pensar no que pode acontecer por aqui no caso de chegar a nossa hora de pagar penitência pela atual crise econômica. O fato é que continuamos tendo um segmento gigantesco de população que vive às margens dos benefícios do crescimento econômico. Além disso, como nos países convulsionados pela crise na Europa, inexiste aqui uma alternativa de saída da profunda alienação em que milhões de jovens se encontram dentro dos verdadeiros guetos urbanos em que amplas regiões de nossas cidades se transformaram. E que ninguém alimente a vã esperança de que os muros e cercas elétricas que protegem os condomínios fechados sejam suficientes para garantir paz e segurança.