A corrupção nossa de cada dia: entre a demonização e a naturalização, a desigualdade social continua firme e forte
Por mais que não pareçam, algumas coisas estão intimamente entrelaçadas, e só analisando-as desta forma podemos compreender o que está por detrás de cada uma delas. Vejamos o caso da crise ministerial envolvendo os ministros do Transporte e da Agricultura, que recentemente tiveram seus cargos removidos por força das evidências de corrupção em suas pastas. Uma tentação que ocorre nestes momentos, e que a imprensa tende a ecoar, é que a corrupção é algo ligado apenas às pessoas, deixando de lado uma análise que aponte para problemas sistêmicos. Por outro lado, sempre se perde uma ótima oportunidade de refletir sobre os efeitos prolongados que a apropriação indébita de vultosos recursos públicos traz sobre o funcionamento de uma dada sociedade. Eu me arrisco a dizer que uma omissão mais grave ainda é a não reflexão acerca do papel que a corrupção no interior do Estado cumpre para manutenção do status quo social e econômico. Neste sentido é que vejo uma relação direta entre o nível de corrupção e o grau de segregação que existe numa determinada sociedade. Nesta ótica, a apropriação particular ilegal de bens não é uma patologia pessoal, mas sim uma importante ferramenta de concentração de renda existente dentro dos grupos que controlam o Estado.
No Brasil, uma dificuldade que encontramos é que a maioria das pessoas tende a adotar uma posição que oscila entre moralista e conformista. O moralismo fica por conta da demonização dos que são pegos com as mãos na boca da botija, enquanto que o conformismo se mostra numa naturalização da corrupção como algo inerente ao DNA do povo brasileiro. Esse tipo de comportamento é mais comum do que se pensa. E não têm sido poucos os governantes na história brasileira que escaparam do ostracismo destinado aos corruptos simplesmente por aparecerem como sendo capazes de construir pontes e rodovias. Assim, o que a maioria não pensa é que a consagração do “rouba, mas faz” é um tiro no pé coletivo. Afinal, o mais correto seria todos pensarem que quanto menos se roubasse dinheiro público, mais se faria para diminuir o fosso social existente no Brasil. No entanto não é o que normalmente se vê, inclusive no sistema legal vigente, onde ladrão de galinha vai mais rápido para a cadeia do que um político pego roubando milhões dos cofres públicos. Como se viu recentemente no caso dos ocupantes do Ministério do Turismo, até mesmo a presidente Dilma Rousseff veio a público reclamar dos exageros cometidos pela Polícia Federal. O ex-presidente Lula, em sua sabedoria peculiar, ainda protestou contra a divulgação de fotos dos presos, pois aqueles não seriam ladrões comuns. Alguém precisa avisar Lula que se fosse na China, estes dirigentes, alguns inclusive companheiros petistas, correriam o sério risco de serem executados, e suas famílias ainda teriam de pagar o custo da munição.
Mas voltando à dificuldade de vermos os efeitos cotidianos da corrupção, o problema parece estar na dissociação que se faz entre sua existência e seus efeitos difusos em toda a vida social. Esse fato ficou óbvio para mim recentemente, quando a agência russa de controle veterinário proibiu a importação de carne brasileira produzida em frigoríficos localizados no Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A explicação dada pelos russos é que o sistema de inspeção brasileiro, que era bom até 2007, teve uma inexplicável queda de qualidade e que por isto, importar carne do Brasil havia se tornado mais arriscado. Por conhecer um pouco do que ocorre dentro de frigoríficos após uma pesquisa que realizei em 2008 na região centro oeste, não me surpreendo com a decisão dos russos, afinal de contas, o número de inspetores do Ministério da Agricultura acabou se tornando insuficiente para acompanhar a grande expansão ocorrida no setor; como resultado, a queda no processo de vigilância foi inevitável. Uma das razões para esta insuficiência foi o contingenciamento de investimentos feitos pelo governo federal dentro dos órgãos que supervisionam o setor. Como os russos nem são os importadores mais rigorosos no que se refere às condições sanitárias da indústria brasileira, vê-se que a falta de investimentos nos órgãos de controle ainda poderá causar mais embargos nos próximos meses. O interessante nisto tudo é que enquanto a situação se deteriorava no seu ministério por falta de aporte dos recursos necessários, o ex-ministro Wagner Rossi voava feliz pelos céus brasileiros a bordo de jatinhos de uma empresa que lucrou bastante durante sua permanência no Ministério da Agricultura. Mais didático impossível!
A questão do embargo das importações de carne pelos russos, convenhamos, é uma gota no oceano das conseqüências nefastas que a corrupção exerce em nossas vidas. Uma fotografia mais completa pode ser encontrada em escolas e hospitais por todo o território brasileiro. E isto não é à toa, pois existem dados mostrando que é na saúde e na educação que ocorrem os maiores saques contra os cofres públicos no Brasil. Este fato denota a face mais sórdida da corrupção, visto que compromete a saúde e o futuro dos milhões de brasileiros pobres todos os dias.