quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O processo de estrangeirização da propriedade da terra e os riscos sobre a segurança alimentar no mundo

Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no site da Revista Somos Assim


Desde 2008, estamos assistindo a uma nova corrida pela terra no mundo; uma das características dessa corrida é a transformação da terra em mais um dos muitos fatores que alimentam a especulação financeira. Este processo despertou o interesse de estudiosos preocupados com os efeitos que isto está tendo sobre populações tradicionais e camponesas, especialmente em países da África e da América Latina. O termo usado em inglês é “land grabbing” que, por falta de uma melhor tradução, foi adaptado no Brasil para “estrangeirização” da propriedade da terra. A estrangeirização da propriedade da terra é um processo que normalmente envolve a compra de grandes porções de terras agrícolas por empresas multinacionais e fundos de pensões. Entretanto, o processo de “land grabbing” desafia a sua denominação em português, já que, em alguns casos, há também a participação de governos nacionais que se envolvem na expropriação de terras tradicionalmente ocupadas por comunidades e indivíduos.

Uma das características mais trágicas deste processo é que não existem muitas porções da Terra que estejam completamente desprovidas da presença humana. Assim, toda vez que uma grande porção de terras é vendida para grupos estrangeiros, é muito comum que comunidades inteiras sejam removidas de maneira forçada, seja por meios relativamente pacíficos ou pelo uso direto da força, tanto por grupos paramilitares ou mesmo por forças policiais e militares. Já no que tange ao uso dado às terras que estão sendo ocupadas por grandes corporações, a maior parte delas está sendo usada para a produção de monoculturas, muitas voltadas para a produção de biocombustíveis. Assim, a combinação destas duas facetas resulta numa situação aparentemente paradoxal, na medida em que aqueles que produzem alimentos são expulsos de suas terras, que passam então a serem usadas para outros objetivos.

Mas, quais são mesmo as culturas mais comuns para terras que estão sendo estrangeirizadas? Em muitos locais, a receita é bem básica: plantio de grandes extensões de soja, milho, dendê, cana-de-açúcar e eucalipto. O plantio destas culturas está sendo impulsionado por dois fatores básicos: a necessidade de ração para alimentar rebanhos animais e a produção de biocombustíveis e celulose. O problema que acompanha o predomínio destas culturas é que a maioria delas não se presta para alimentar a população humana. Assim, há uma crescente preocupação de que a produção de alimentos diminua a níveis insuficientes o que, por sua vez, poderá levar a um aumento no já grande número de pessoas desnutridas ou, simplesmente, famélicas. Afinal de contas, um elemento básico do Capitalismo é o aumento dos preços quando há uma diminuição na oferta de determinado produto. E alimentos, querendo ou não, são parte da cadeia produtiva capitalista e controlada pelos mesmos mecanismos de controle dos preços.

E o Brasil, como fica neste processo? As evidências já obtidas por pesquisadores interessados neste fenômeno apontam no sentido de que estamos ocupando um papel duplo. Por um lado, estamos assistindo a uma crescente aquisição de terras brasileiras por grandes transnacionais e fundos financeiros. Enquanto isto, o latifúndio brasileiro está estendendo seus tentáculos para outros países como Bolívia, Paraguai e Moçambique. Um elemento comum é que, seja como vítima ou algoz da estrangeirização, o modelo aplicado é o de estabelecer grandes áreas de monocultura, principalmente de cana e soja. Essa nova conformação da ação do latifúndio brasileiro aponta para a exportação de um modelo ancorado no trabalho escravo e na degradação ambiental. Agora, produção de alimentos que é bom, nada.

Se alguém achar que esse fenômeno soa familiar, eu diria que isto se deve ao exemplo que temos aqui bem perto, no município de São João da Barra. Ainda que o tipo de “land grabbing” que está em curso no 5º Distrito seja muito peculiar, a expropriação de pequenos produtores pelo governo do Rio de Janeiro para doar suas terras para o Grupo EBX é um exemplo inegável do que está ocorrendo em outras partes do mundo. Além disso, o caso do Açu pode ter repercussões em outras áreas onde o fenômeno da estrangeirização das terras está ocorrendo, já que o governo federal está planejando ampliar a conexão por estradas e ferrovias. Além disso, a recente descoberta de que a construção do estaleiro da OSX está causando um grave processo de salinização nas terras e corpos aquáticos localizados no Açu apenas representa uma camada adicional de problemas.

Muitos poderão se perguntar se há alguma razão objetiva para preocupação em face do avanço da expulsão dos camponeses e da entrada de grandes corporações em seus territórios. Como resposta, diria que basta dar uma olhada nos dados existentes sobre a produção de alimentos que já encontraríamos dados suficientes para soar o alarme. No caso do Brasil, a maioria da produção de alimentos é ligada à produção familiar, como ficou bem demonstrado pelos dados apresentados no último Censo Agropecuário, característica que se repete em todo o mundo, com a produção familiar/camponesa fornecendo os alimentos que chegam às mesas para serem consumidos; assim, este processo não deveria ser tolerado ou aceito passivamente. Como já disse certa vez Jean Ziegler (ex-relator especial da ONU sobre o Direito Humano à Alimentação): a fome não é uma questão de fatalidade – ela é produto da ação humana. Assim, a ação humana é que deve deter seu avanço. Infelizmente, não é o que está acontecendo, e ainda poderemos singrar mares bastante famélicos por causa disto.