Derrame de sal no porto: Soffiati diz que solução é parar tudo
Com a perspectiva de um grande desastre ambiental em andamento na região após a constatação por uma equipe da Uenf da salinização da água e das terras da Baixada pela construção dos canais para o estaleiro do Super Porto do Açu, a equipe da Somos procurou o Mestre e Doutor em história ambiental, professor Aristides Soffiati, atualmente um dos mais respeitados ecologistas brasileiros. Segundo ele, para conter os danos ainda em andamento a solução imediata seria parar tudo e repensar todo o mega empreendimento que está sendo realizado no 5° Distrito de São João da Barra. Confira:
Somos: Qual a sua visão diante desse desastre ambiental?
Soffiati: Eu previ isto, porque a questão é a seguinte, a areia retirada do fundo do mar para a abertura de um canal para dar acesso aos navios no porto e depois um segundo canal de acesso ao estaleiro seria jogada dentro do próprio mar. Eu fui a duas Audiências Públicas, a do porto em 2006 e do estaleiro, em 2011, e, nas duas, o próprio estudo de impacto ambiental disse que a areia seria retirada do mar e jogada no próprio mar, e não jogada no continente. Isso está escrito. Ninguém falou em tirar a areia do mar e jogar no continente. Isso não está de acordo com o que foi apresentado no estudo de impacto aprovado, nem na Audiência Pública. Audiência Pública não aprova nada, mas isso não foi exposto. Então, se não é ilegal é irregular. Na audiência pública foi bem esclarecido. O Inea licenciou esse processo, o que já seria problemático, porque revolver o fundo do mar para abrir um canal de 13 km de extensão, 300 de largura e 18 de profundidade é um volume de areia considerável, então, só de retirar areia já causaria impacto ao ambiente no fundo do mar. Jogando em outro lugar, no fundo do mar, também já causaria impacto, mas o Inea licenciou isso. No entanto, eles começaram a usar a argila do Km 13 para fazer um aterro de 6 metros mais ou menos, aí perceberam que usar areia estava mais barato, e começaram a fazer com areia, e essa areia vinha encharcada de água salgada. Quando foi montado o aterro, essa água começou a escorrer e a cair em alguns canais e começou a entrar no solo e se acumular no lençol freático, e a salinizar tudo mesmo. Eu falei ‘isso vai acontecer’ antes de acontecer, até que um dia a Marina Suzuki fez coleta de água na Lagoa de Iquipari e disse: “quanto mais eu me afasto do mar, mais a água fica salgada, como eu explico isso?”, eu falei “simples, o que eu falei com você está acontecendo”, se a gente tirar a areia do mar, toda úmida, encharcada de água, essa água corre para dentro dos canais e das lagoas e do lençol freático também, é isso que está acontecendo.
Os danos no geral
“Um órgão chamado Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) foi extinto em 1989, assim que Collor assumiu a presidência. Esse órgão foi criado em 1933, com outro nome, mas, na verdade, era o mesmo órgão e durou até 89. O trabalho dele era drenar lagoa, abrir canais, e um dos trabalhos foi dessalinizar todo o trecho que vai do Açu até a Lagoa Feia; tirar o sal, quer dizer, fazer um sistema de lavagem do sal existente ali e aí aconteceu que o DNOS, inclusive quando abriu a Barra do Furado, fez uma espécie de ferradura para que a água do mar entrasse pelo canal da Flecha, não se alastrasse e não salinizasse toda área que era salinizada antigamente, então, era uma área pesqueira, aqueles canais todos tinham peixe do mar e era muito rica. Quando o DNOS fez isso, pegou esse canal que saía do Paraíba e entrava no Açu e desviou esse canal para Lagoa Feia, para o canal das Flechas, que é o canal do Quitingute, a intenção era jogar água doce do Paraíba nessa área toda a fim de tirar a salubridade, barrar a entrada de água salgada pelo canal das Flechas, afim de que essa terra servisse para agricultura e pecuária. Todo esse trabalho custou uma fortuna. Agora vem um empreendimento e saliniza tudo outra vez. E isso muda de novo o lençol freático, que já é meio salitrado, e agora fica salino. Por ali a gente pode saber que a Lagoa Salgada, por exemplo, é uma prova de que aquilo ali, aquela área de restinga, tem muito sal. A Lagoa do Açu também tem bastante sal, fechada, porque ela era aberta antigamente, aí a maré entrava e ia até a lagoa Feia. Então, o lençol freático fica resalinizado, as plantas nativas começam a sofrer a influência do sal, começam a morrer, ou então entram em processo de estresse, como a fauna nativa, que depende dessa vegetação, começa a ficar sem comida; depois afeta a lavoura, começa também a atingir as plantas cultivadas, afeta o gado, o gado precisa de sal, mas não tanto; afeta a água para uso doméstico, a pessoa que tem um poço, por exemplo, não tem água encanada, vai pegar água desse poço e a água está salgada, além do que é possível, então é um problema seríssimo esse da salinização.
Por exemplo, em relação às lagoas, a Lagoa de Iquipari, a principal delas, vai sofrer com isso e também o canal de Quitingute, os peixes que vivem de água doce ou morrem, ou têm que sair dali, eles estão acostumados com água doce, entra a água salgada eles não têm para onde fugir, eles não podem fugir para cima da lagoa, porque a lagoa está sendo aterrada, então não tem para onde escapar. Quando o peixe vê uma linha salina entrando, se chegasse até o Paraíba, entrava no Paraíba e sumia, mas aí não pode; no canal do Quitingute é a mesma coisa, ele chega num determinado ponto e o canal do Quitingute não tem ligação direta com o Paraíba, ele tem as comportas, as barradas, ele não pode entrar no Paraíba e pegar um canal de Vila Abreu, por exemplo, então, começa a morrer e, por outro lado, se houver abertura, entra o peixe de água salgada que começa a competir e altera tudo de novo, eu tinha até pensado em um sistema que salinizasse de novo a área até a lagoa do Lagamar para restabelecer a pesca, mas teria que ser tudo muito bem controlado, é uma resultante, uma consequência, resultante de uma irresponsabilidade muito grande do governo estadual e do empreendimento.
A água salgada para ser tratada é muito cara, o processo de dessalinização é feito em lugares onde não há água doce nenhuma. Por exemplo, na Arábia, nos Emirados Árabes não tem outro jeito, então eles pegam a água do mar, dessalinizam. Mas eles têm muito dinheiro. Aqui não, aqui a gente tem água doce em abundância, agora essa água doce vai ser comprometida pelo sal.”
"Solução é parar tudo"
“A solução é a proposta pelos moradores do 5º Distrito, eu vou nela também, eu acho que tem que parar tudo e repensar esse projeto. Aquele aterro não teria cabimento. Parar tudo pode ser uma coisa impossível, mas no princípio era só um mineroduto que vinha de Minas Gerais e um porto, mais nada, até aí as pessoas estavam tolerando. Isso não implicaria em tirar a areia do mar, sim, tirar, mas jogar dentro do próprio mar. Eles não deixaram de jogar no mar também, porque é muita areia, jogam no mar e jogam no continente, estão fazendo isso, então era só um porto e um mineroduto, depois eles inventaram uma termoelétrica, depois uma outra termoelétrica, depois um estaleiro, depois duas siderúrgicas, um monte de outras empresas, um monte de tudo, então, o grande problema desse complexo que era muito pequeno no início, que agora está impactante, é a água, água para tudo, água para resfriamento das termoelétricas e das siderúrgicas. Eles vão pegar água do Paraíba diretamente, vão pegar uma quantidade de água que, segundo os especialistas, é maior do que a capacidade que o Paraíba tem de fornecer. Isso pode afetar Atafona, que sofre um processo de erosão por conta da diminuição de água, porque grande parte dela é desviada para abastecer o Rio de Janeiro, então, isso pode agravar mais ainda o problema. E se vier a ideia de fornecer água para essas comunidades todas tirando do Paraíba, mata-se o Paraíba, quer dizer, “a gente saliniza tudo, mas não tem problema”. Eles são sempre assim, eles falam assim “não tem problema, a tecnologia resolve tudo, a gente entra em cena e resolve”, qual é a solução? A única fonte de água doce mais próxima agora é o Paraíba, tirar água do Paraíba, na época da estiagem, imagina, o rio baixa muito, ali a linha salina está entrando e está comprometendo inclusive a captação de água para uso público em São João da Barra. Agora você imagina o que pode acontecer diante disso. Agora o que é criminoso no caso é que o Estado vem validando, e avalizando tudo isso, o Inea. Deveria ser o Ibama, mas o Ibama tirou o corpo fora, porque a obra afeta a costa, a área costeira é de competência da União, então, o Ibama, que deveria fazer todo esse processo, passou todas essas atribuições para o Inea, que é estadual, e como o empreendimento é muito rico, tem muito dinheiro, está havendo uma facilitação muito grande nos processos de licenciamento. Se aparecesse um empresário daqui da região querendo elevar o solo da restinga só em cerca de 50 vezes menos do que está sendo feito lá o Inea não deixaria, a remoção da vegetação de restinga, quer dizer, a fauna de restinga, as pequenas propriedades rurais que existem ali, que estão acomodadas e estão ajustadas há anos. Há um século essas atividades são praticadas lá sem danos à restinga, sem danos profundos, aí a alegação é que as áreas ou são improdutivas, ou são degradadas, ou que os pequenos proprietários estão estragando tudo, bom, então eles vão consertar? Não, você chega lá e fica horrorizado, eu chorei quando eu fui lá. Eu não queria ir lá, mas me levaram. Eu fiquei... meu Deus do céu! Essa restinga eu não conheço mais, eu conhecia isso aqui como a palma da minha mão, eu acho que pegaram uma navalha e cortaram a minha mão toda, porque eu olho para ela e não reconheço mais. Cortaram a Lagoa do Veiga no meio em 300 metros na abertura de um canal, o Governo do Estado autorizou, “está tudo muito bem, não vai causar impactos profundos”. Como é que não vai causar impactos profundos? Já estou vendo isso tudo, esse eu já previa, que aconteceu, quando eles disseram que iam usar a areia retirada do fundo do mar para jogar no continente e elevar a restinga, uns seis metros mais ou menos, fazer o aterro hidráulico, eu falei, “vai acontecer isso”. A solução seria parar tudo e discutir tudo isso direitinho. E vamos diminuir esse empreendimento. Eu nem digo tirar todo o empreendimento não, porque o que se fez lá foi o aterro, o porto está sendo construído, o estaleiro que está sendo aberto, mas ainda não se tem notícia das termoelétricas em construção avançada, as siderúrgicas não começaram ainda. Vamos discutir isso tudo, porque essa restinga não comporta esse complexo todo. Isso tem que ser descentralizado, tem que ser colocado em outro lugar. Mas não pode ser ali.
Os moradores não têm uma saída, se eles correrem para o que eles chamam de Rio Doce, ou Rio Água Preta, que na verdade, hoje, é o canal do Quitingute, se está nesse nível aqui, ali não é mais viável para água destinada a consumo público, se o lençol freático está salinizado também, como o lençol freático lá é muito alto, quer dizer, quando a gente faz um buraco qualquer a água já sobe, se estiver salinizado, começa a afetar as plantas, se afeta as plantas, afeta os animais, e ainda vai salinizar áreas que estão longe do empreendimento através do canal do Quitingute que vai para Lagoa Feia, que vai para o canal das Flechas, que é o canal que escoa as águas da Lagoa Feia. Então vai salinizar toda aquela área que o DNOS dessalinizou a altos custos, e quem está muito longe dali pode ser afetado, quem cria gado ou planta cana, que foi possível só depois que o DNOS entrou em ação e dessalinizou a área toda, pode perder tudo isso de novo. Eu não sei como, eles não perceberam isso ainda. Eu acho que o processo ainda não chegou até lá nessa intensidade, mas isso vai começar a se manifestar. Na verdade, essas pessoas só gritam na hora que essas coisas acontecem. Desde 2002 eu falo, “vocês tomem cuidado porque, por enquanto, pode não afetar vocês, mas em um determinado momento isso vai crescer tanto que vai entornar em cima de vocês”. E agora está acontecendo isso e parece que só assim as pessoas se mexem. Talvez elas se mexam num momento que seja tarde demais. Isso é mais um agravante, agora não é só a morte de tartaruga, as dragas sugam as tartarugas e matam peixes, tartarugas. Não é só mais o desmatamento, São João da Barra bateu o recorde de desmatamento, em 2009, 2010 e 2011, 30 hectares foram desmatados, e quem fez isso tudo foi o empreendimento. A fauna nativa está sendo jogada na fazenda Caroara. Tem muito animal que está fugindo para outros lugares, está perdido. Os produtores rurais estão ameaçados cada vez mais, porque o empreendimento está avançando sobre as áreas deles, eles são expulsos dali de qualquer maneira e não tem uma segurança muito grande, agora, diante disso tudo, não precisa nem mais chamar a polícia e a justiça para desapropriar o indivíduo. Se continuar nesse ritmo – eu não sei se o processo acabou – do aterro que eu falo, a gente não pode entrar lá, já tentei entrar duas vezes, me barraram, a não ser que a gente vá oficialmente, a gente vá para lá de ônibus e tudo, ônibus da empresa, que a gente coloque bota, capacete para ver o que eles querem que a gente veja. Mas o que eu quero ver, eles não vão deixar, porque ali eu conhecia ponto por ponto, então eu vou querer ir em certos lugares que eles não vão deixar. Eu vou querer ver, por exemplo, o aterro que está sendo feito lá na cabeceira da Lagoa de Iquipari, vou querer ir na mata da Caroara para saber se está tudo correndo bem como eles falam que está. Eles estão pagando muito bem para propaganda, as fotografias são lindas, as publicações são de primeira qualidade, mas o trabalho não é”.