O lixo como síntese dos nossos grandes problemas contemporâneos
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado inicialmente no site da Revista Somos Assim
Uma das principais questões afetando a qualidade de vida nas cidades de todo o mundo é o destino dado ao lixo que é gerado todos os dias. O fato é que, vivendo dentro de um sistema social que preconiza o consumo desenfreado, torna-se inevitável que aquilo que compramos e não mais usamos tenha de ser colocado em algum lugar. Para piorar, temos o fato de que a Terra não é um sistema fechado em si e, por causa disso, tudo que retiramos de sua estrutura fica inevitavelmente mantido no ecossistema planetário, ainda que em formas socialmente indesejadas.
O interessante é notar que o que é lixo indesejado por uns, pode ser o tesouro de outros. Tal situação foi ilustrada recentemente por uma estranha notícia que dizia que cidades espanholas estavam lacrando suas lixeiras por questões de saúde pública. Mas se engana quem logo pensa que a medida extrema teria algo a ver com a decomposição do lixo, já que a decisão foi tomada pelas autoridades sanitárias espanholas para evitar que pessoas desempregadas e famintas continuassem buscando comida nas lixeiras. Tal desdobramento, impensável para países europeus até bem pouco tempo, é algo que faz parte do cotidiano de milhões de habitantes dos países do antigo Terceiro Mundo. Aliás, quem já não viu alguém revirando lixeiras atrás de comida ou outros restos que possam ser trocados por dinheiro? Mas apesar de ser motivo de asco e indiferença, a garimpagem de comida em lixeiras é apenas uma pequena parte do problema.
No caso brasileiro, a falta de estratégias claras para recolher e tratar o lixo que é gerado em nossas cidades tem sido uma marcante evidência do nosso processo de urbanização tardia. O comum é que o lixo recolhido em condições precárias seja depositado em lixões que não obedecem a quaisquer critérios técnicos; como em muitos outros casos, a resposta a isto vem sendo lenta e gradual. Quando o presidente Lula sancionou em 2010 a Lei Nº 12.305, instituindo a Política Nacional de Resíduos Sólidos, surgiu pelo menos uma perspectiva de que poderíamos começar a buscar soluções que permitissem um avanço significativo numa área tão crítica para a saúde dos habitantes das nossas cidades.
Entretanto, creio que seria uma grande ilusão acreditar que se pode resolver um problema tão complexo como o do lixo apenas com a promulgação de lei sobre o tratamento de resíduos sem se preocupar com o início da cadeia de produção, ou seja, nosso consumo excessivo. Mas, a meu ver, um dos maiores problemas envolvidos é que há uma crescente influência dos agentes privados na materialização das soluções, e como empresas sempre tendem a olhar primeiro para os seus lucros do que para a entrega do produto prometido, existem casos em que o simples estabelecimento dos chamados aterros sanitários acaba perpetuando a mesma lógica de se livrar do lixo, e não a de se pensar formas mais democráticas de não apenas recolher e destinar resíduos, mas também de beneficiá-los.
Há alguns meses tive a oportunidade de ouvir um grupo de mulheres que vivem da coleta de material reciclável dentro do antigo lixão da CODIN, no Distrito de Guarus, que estavam aflitas, porque a empresa concessionária do serviço de coleta de lixo na cidade de Campos dos Goytacazes havia estipulado um número de catadores que excluiria muitas delas do seu ganha-pão. Segundo uma das trabalhadoras, os programas de reciclagem de determinadas empresas e organizações não-governamentais teve um impacto altamente negativo na renda dos catadores. Aqui a ditadura do mercado não diminuiu somente a renda dos trabalhadores, mas o próprio acesso a ela.
Outro fato que decorre da Lei No 12.305 é a proliferação de aterros sanitários sem o devido processo de licenciamento ambiental. Um exemplo disto foi o processo de criação do Aterro Sanitário de Seropédica na Baixada Fluminense, cercado por grandes controvérsias devido ao passivo ambiental que irá gerar e das ameaças potenciais sobre o chamado Aquífero Piranema; apesar de todas as estimativas e os alertas feitos por especialistas, as decisões políticas tomadas pelo governo do Rio de Janeiro acabaram passando ao largo em favor de critérios econômicos. Assim, quando o sempre lépido secretário estadual de Meio Ambiente, o ex-ambientalista Carlos Minc, se envolve diretamente no processo de criação de aterros sanitários em diferentes partes do território fluminense, não há como não ficar preocupado. Afinal, como não há a adoção de políticas estruturais para minimizar o problema do lixo, o mais provável é que tenhamos apenas a disseminação de aterros sanitários, e não a adoção de soluções efetivamente sustentáveis.
Para finalizar, me parece que não haverá solução para o problema do lixo enquanto não houver um questionamento da forma e dimensão em que os mais ricos estão consumindo. A simples realização de campanhas educativas, ainda que necessárias, não resolverá nada. Tampouco resolverá ter políticas para dispor daquilo que se torna descartável, se o modo de consumo privilegia justamente o que é mais rapidamente descartável. Por último, a diminuição da geração de lixo não se dará enquanto não se reverter a perversa condição de igualar a obtenção da cidadania ao grau de inserção no mercado de consumo. Tais questões transcendem, ainda que não tornem irrelevantes, todas as discussões sendo feitas sobre como melhor recolher e dispor o lixo que geramos.