Carlos Marighella simboliza a figura dos heróis brasileiros que se negam a morrer ou a serem esquecidos
Marcos A. Pedlowski, artigo publicado no número 224 da Revista Somos Assim
Uma das principais características de qualquer história oficial é que esta tenta sempre esconder, quando não desfigurar, o papel cumprido por determinados indivíduos que vivendo sob risco pessoal contínuo, dedicaram suas vidas a mudar a ordem social estabelecida. Isto acontece não apenas porque estas figuras sejam consideradas impertinentes e anti-status quo, mas principalmente porque atrapalham as noções de apatia e conformismo que são disseminadas para manter a ordem. No caso brasileiro, um exemplo mais óbvio disto foi Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, participante da chamada Inconfidência Mineira, cujo esquartejamento pela Coroa Portuguesa foi suplementado em sua sentença de morte com a ordem para que a casa em que vivia em Vila Rica fosse arrasada e salgada, para que nada além pudesse crescer ou ser edificado.
Mas Tiradentes não é o único, e talvez não o último, personagem histórico que mereceu um tratamento tão implacável do Estado. Se tomarmos apenas o exemplo da última ditadura que governou o Brasil, centenas de famílias esperam até hoje pelos restos mortais daqueles que tombaram confrontando o regime de exceção. Por um lado, esta negativa em informar onde foram enterrados os que morreram combatendo o regime de exceção serve para que não se conheça a condição na qual morreram a maioria, sob tortura. Mas não retornar os corpos é também uma forma marota de manter famílias inteiras desprovidas da possibilidade de oferecer um enterro decente para que se possa, no mínimo, render-lhes homenagens no Dia dos Mortos. De quebra, a ocultação de cadáveres promovida pela ditadura de 1964 permite que os construtores da historia oficial possam manipular livremente os fatos, num esforço interminável de desfigurar o que realmente ocorreu.
Felizmente, a História não se faz apenas com os que protegem a ordem, e os fatos históricos não são propriedade particular dos historiadores que operam sob encomenda. Assim, a força que os personagens históricos possuem em relação aos que querem estender o extermínio à memória teve um belo exemplo na semana que passou, quando o líder comunista Carlos Marighella foi homenageado no dia do centenário de seu nascimento pela Comissão de Anistia. No dia 09 de Dezembro, a família de Marighella recebeu em Salvador, cidade natal do ex-líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), o pedido formal de desculpas do Estado brasileiro pela perseguição política que ele sofreu ao longo de toda a vida.
Em um país cuja memória histórica é continuamente salgada para que não conheçamos nossos verdadeiros heróis, este reconhecimento deve causar muito rebuliço, e não apenas dentro dos setores mais duros das Forças Armadas. É quase certo que leremos muitos dos disseminadores do pensamento conservador falarem que tal homenagem é absurda, visto o papel que Carlos Marighella sempre desempenhou contra o Estado brasileiro.
Mas quem foi mesmo Carlos Marighella? Creio que não são apenas os nascidos após 1969, ano do assassinato do principal líder da ALN, a desconhecerem a sua impressionante trajetória de vida. Nasceu filho de um operário imigrado da Itália com uma negra descendente dos haussás, conhecidos pela combatividade nas revoltas contra a escravidão; em função desta origem, Marighella logo se envolveu nas lutas sociais, sendo preso pela primeira vez em 1932 por escrever um poema crítico ao interventor Juracy Magalhães. Este ano acabou sendo chave na vida de Marighella, visto que se mudou para o Rio de Janeiro para militar no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Em 1936 foi preso novamente e foi barbaramente torturado por Felinto Muller, chefe da polícia política do governo Vargas. Aliás, Fellinto Muller se especializou em torturar Marighella, já que em 1939 os dois se encontraram novamente nos porões da famigerada Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS).
Apesar da perseguição, Marighella foi eleito deputado federal constituinte pelo PCB em 1946. Apesar de perder o mandato em 1948, em virtude da decretação da ilegalidade do partido, permaneceu como um quadro importante do PCB até romper com a direção do partido em 1967, quando foi expulso sumariamente. Após sua expulsão do PCB, Carlos Marighella fundou a ALN, que passou a ser a principal organização a fazer oposição armada ao regime militar. Em função disto, Marighella passou a ser considerado o inimigo público Número 1 do regime militar, e tinha sobre si não apenas uma ordem de prisão, mas sim de extermínio. Carlos Marighella acabou sendo morto em uma emboscada em 1969 por outro expoente do aparato repressivo montado pelo Estado brasileiro, o delegado paulista Sérgio Paranhos Fleury.
A verdade é que o assassinato, e não a prisão de Marighella, havia se tornado uma questão crucial para os militares após o envolvimento da ALN no seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, sequestro este que não apenas serviu para libertar guerrilheiros, mas que também embaraçou o regime autoritário internacionalmente. Neste sentido, mais do que “anistiar” Carlos Marighella, o que o Estado brasileiro deveria fazer hoje seria retornar os despojos de todos aqueles que ainda continuam desaparecidos. E ligeiro. Quanto a nós, mais do que nunca, precisamos celebrar os 100 anos de Marighella enaltecendo sua luta por uma sociedade mais justa e solidária.