Por Maurício Colares
A imposição de irresponsáveis projetos de mega mineradoras, como a Yanacocha, depredadores do meio ambiente é um dos principais causadores das mais de três centenas de mortes de militantes sociais nos últimos cinco anos no Peru. O último episódio desse massacre institucional, fora o uso de grupos paramilitares e assassinos profissionais, acaba de ocorrer esta semana, com a morte de cinco manifestantes pela polícia, mais de vinte feridos e a prisão de Marco Arana, ex-padre e líder da organização Terra e Liberdade.
Yanacocha e Yanacocha
Atualmente a maior mineradora do mundo, a Yanacocha foi fundada legalmente em 1992, logo depois do golpe de Estado de Fujimori, no departamento de Cajamarca, a 800 quilômetros ao noroeste da cidade de Lima, capital do Peru, tendo como acionistas a corporação estadunidense Newmont Mining (51.35%), a companhia peruana Minas Buenaventura (43.65%) e a corporação internacional IFC (5%), afiliada ao Banco Mundial. Sua principal exploração é a mina de Yanacocha, a maior mina de ouro da América Latina e a segunda maior do mundo.
Os questionamentos sobre a Yanacocha começaram já em 1993, quando muitos campesinos denunciaram a coação para vender suas terras e os ínfimos preços pagos pelas mesmas. Marco Arana começou primeiro uma luta para que fosse pago aos camponeses o preço real da terra, mas depois, com a denúncia de diversos crimes ambientais e sociais, ele e os camponeses passaram a lutar contra a implementação da mega mineradora no monte Quilish.
Ocorrido em junho de 2000, o pior desses crimes ficou conhecido como “desastre de Choropampa”, “o maior desastre mundial de mercúrio inorgânico que afetou toda uma população”, segundo as palavras do ex-padre, ocasionando dores de cabeça, reumatismo, cegueira, hemorragias nasais, irritabilidade e outros sintomas.
“Operación Diablo”
Marco Arana Zegarra, que está prestes a completar 50 anos, sociólogo e ex-padre, é um dos maiores estudiosos dos efeitos nocivos das mega mineradoras para a população e para o meio ambiente. Unindo prática e teoria, é também um aguerrido ativista ambiental e pelos direitos humanos no Peru. Em 2004, quando ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, alguns jornais de Cajamarca descreviam os manifestantes contra a Yanacocha como “bêbados alentados por um padre comunista que lhes entrega aguardente".
Mas os ataques contra Marco não se limitavam a uma desmoralização midiática. No início de março passado tivemos a oportunidade de assistir no Festival Internacional de Cine Político, em Buenos Aires, o documentário Operación Diablo, da diretora canadense Stephanie Boyd, que narra como na década passada, por anos uma empresa de vigilância a serviço da Yanacocha grava todos os passos de ativistas contrários aos projetos da empresa. A operação recebe o nome que dá título ao documentário e, entre os apelidos utilizados para identificar os perseguidos, sobressai-se o de Arana: El Diablo.
Ganhador em 2011 do Prêmio Internacional de Direitos Humanos do Festival de Berlim, o documentário pode ser visto na íntegra em: http://www.youtube.com/watch?v=PQk_U9WLHgA. Uma das cenas mais estarrecedoras é a do sequestro de vários ativistas pelos “seguranças” da empresa, na verdade ex-militares recrutados para disseminar o medo na população e nos militantes sociais.
Projeto Conga
A despeito de todas as denúncias de crimes ambientais e de violações dos direitos humanos, durante o governo de Alan García (2006-2011) nada foi feito para frear os desmandos. Ao contrário, a empresa só cresceu e aumentou a sua sanha, criando o expansivo projeto Conga, alvo atual dos permanentes e resistentes protestos dos campesinos, porque, para eles, o projeto que está na iminência de ser instalado nas províncias de Celendín, Cajamarca e Hualgayoc ameaça o abastecimento de água para o consumo humano, para a agricultura, pecuária, piscicultura e outras, já que esta zona é a principal fonte geradora de recursos hídricos da região.
O projeto Conga foi aprovado de forma semelhante ao que ocorre nos Estados Unidos com os tecnocratas de Wall Street que passam aos ministérios de governo. Quem deu o aval foi o engenheiro Felipe Ramírez del Pino, diretor da Direção Geral de Assuntos Ambientais Mineiros (DGAAAM), do Ministério de Minas e Energia, um ex alto funcionário da Yanacocha entre 2006 e 2009.
Entre os principais pontos do rechaço dos campesinos está o domínio territorial que representa o projeto. Em Cajamarca as concessões são de 47.3% do tamanho do território e há outros lugares, como em Apurímac, o novo centro de concessões mineradoras, que chegam a 58.4%. Além disso asseguram que haverá a degradação generalizada do ecossistema e, finalmente, que o resultado será que menos de 1% das riquezas extraídas ficará em Cajamarca, continuando o povo local em sua pobreza extrema, da mesma forma como está hoje.
Ollanta Humala
No meio do epicentro dos conflitos está o atual presidente Ollanta Humala. Eleito sobretudo com o apoio dos campesinos, tendo dito em campanha que “a água é mais importante do que o ouro”, Humala passou, segundo alguns ativistas depois que teve no ano passado uma reunião comercial nos Estados Unidos, a pautar seu governo num projeto desenvolvimentista, motivo pelo qual modificou seu discurso. “Sim se pode ter o ouro e a água ao mesmo tempo”, disse no final do ano passado quando se reiniciaram os conflitos em Cajamarca.
O distanciamento entre Humala e os movimentos campesinos se consolidaram com o aval do governo à instalação do projeto Conga em abril passado. “Devemos ter capacidade e vontade para prevenir os conflitos e não usar as mesmas estratégias do governo anterior”, expressou-se Julia Cuadros, diretora da entidade CooperAcción.
Diante das mortes ocorridas, alguns ministros do governo saíram a atacar o presidente regional de Cajamarca, Gregório Santos, de incitar o povo ao confronto, o que, segundo Carlos Tapia, analista político e ex-assessor de Humala, é uma tentativa de criminalizar os movimentos sociais. “Si Keiko [a filha de Fujimori] tivesse ganhado, que papel teria Humala no meio de um cenário como o de Cajamarca? Estaria apoiando a Santos, não tenho nenhuma dúvida”, afirmou a uma rádio alternativa.
Ao que tudo indica, a situação do Peru lembra um pouco a do Paraguai: um presidente eleito pelo voto popular e que passa a fazer concessões por uma governabilidade duvidosa, que acaba por não lograr objetivos democráticos, passando à subserviência aos grandes conglomerados econômicos e às políticas do passado recente, nesse caso do Peru Fujimori-Toledo-García. Além de engessado, torna-se muito frágil, como ocorreu com Lugo. Até os tipos de conflito são semelhantes e propícios às novas formas de golpe na América Latina.
O governo tenta reverter a terrível situação em que se encontra Cajamarca com um diálogo com os campesinos que será mediado pelo padre Miguel Cabrejos, ex-presidente da Conferência Episcopal Peruana.
Protestos e Estado de emergência
Desde que Humala declarou total apoio à implantação do projeto Conga no final de abril passado, mais de 20 organizações, federações, sindicatos e paróquias fizeram uma carta aberta a Humala e garantiram fazer uma “resistência pacífica permanente pela vida e a dignidade” até que se garantisse a inviabilidade do projeto. No dia 31 de maio, as organizações começaram uma jornada de mobilizações pacíficas em todo o departamento de Cajamarca. Os manifestantes pediam que o presidente cumprisse as promessas de campanha e não dê continuidade às “políticas excludentes, centralistas e depredadoras dos recursos naturais da região”. Uma das principais iniciativas foi a criação de “vigilância cidadã” pelas Rondas Campesinas batizadas como “Guardiães das Águas”, com a tarefa de “vigiar, de maneira permanente, as lagoas para não deixar que empresas mineradoras possam destruí-las”.
Com o aumento das manifestações, o governo distribuiu o decreto supremo N°070-2012-PCM, que declarou estado de emergência nas províncias de Cajamarca, Celendín e Hualgayoc durante 30 dias. Como os protestos continuaram, com estes departamentos militarizados, houve confrontos e nos dias 3 e 4 passados cinco campesinos morreram, 15 ficaram feridos e cerca de duas dezenas de pessoas foram presas, entre elas Marco Arana, que, após ser liberado ontem, denuncia que foi intimidado e agredido fisicamente nas dependências da polícia.
Normalização do crime
Diante da violência de mais um massacre a campesinos na América Latina, mais uma vez também chama a atenção a aceitação e vulgarização do crime cometido. Friamente o titular da Sociedade Nacional de Mineração, Petróleo e Energia (SNMPE), Pedro Martínez, falou sobre o perigo que os “conflitos sociais” representam para a “inversão de aproximadamente 9,641 milhões de dólares” e sugeriu que o Estado não paralise o projeto Conga, já que se trata da “inversão privada mais importante da história do Peru”.
Hipocritamente, um porta-voz da Yanacocha anunciou que, “apesar dos protestos”, a empresa continuará seus trabalhos, acrescentando sugestivamente, “enquanto as autoridades não lhes diga que parem”. Também o presidente da Buenaventura, umas das sócias da Yanacocha, pronunciou-se dizendo que espera “que se restabeleça o diálogo”.
Por último, as próprias notícias da morte dos camponeses, seus funerais são descritos com uma naturalidade brutal. Comentando com um amigo peruano em Buenos Aires, que conhece regiões como Cajamarca, ele me explica que não é uma impressão. Assim é. “A vida de um camponês peruano não vale uma onça de ouro”, afirma. A conclusão de uma tão medonha afirmação é que, assim como ocorreu durante as últimas ditaduras, o “valor” de uma morte e a memória de um cidadão covardemente – segundo fontes médicas oficiais, não houve um policial ferido – assassinado continua dependendo da classe social a que pertence, onde não contam índios e camponeses, como ocorreu com onze recentemente no Paraguai, como existiu agora no Peru. Passa como morte natural e logo cai nas névoas da história oficial. Por tal, o enunciado de Milan Kundera continua mais do que nunca válido: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.