Claudio Dantas Sequeira
Criado em 1988, o Tocantins teve como primeiro governador o cearense José Wilson Siqueira Campos. Um de seus primeiros atos como chefe do Executivo foi distribuir terras públicas a quem quisesse se estabelecer no novo Estado e fazê-lo prosperar. Até aí não há nada de errado. O problema é que, em vez de socializar a ocupação da terra, Siqueira usou da prerrogativa do cargo para favorecer familiares e amigos. O que agora o Ministério Público constata é que a prática não se restringiu à época da fundação do Tocantins. Perdurou nas duas décadas seguintes e serviu também para a compra de apoio político e sua blindagem na Justiça. Um caso exemplar envolve uma fazenda numa região nobre de Palmas, a capital do Estado. Por meio de decreto, Siqueira desapropriou a área equivalente a cerca de 350 campos de futebol para fins de “utilidade pública”. Enquanto passavam os tratores sobre as casas de famílias que moravam no local, agentes do governo alegavam que ali seria construído um hospital. Mas o que aconteceu depois foi bem diferente. Em novembro de 1998, o Instituto de Terras do Tocantins (Intertins) loteou a fazenda e distribuiu os lotes por meio de licenças de ocupação e exploração. O lote 15, equivalente a 13 campos de futebol, passou às mãos da atual primeira-dama, Marilúcia Leandro Uchoa Siqueira Campos. A licença, assinada de próprio punho por ela, destinava o imóvel à produção agropecuária – uma espécie de assentamento de luxo. Passados 12 anos, a chácara não produziu um grão sequer, e a antiga fazenda passou a abrigar casas luxuosas.
Ela não foi a única assentada. No mesmo dia, o Intertins concedeu licenças de ocupação ao secretário de Comunicação do governo, Sebastião Vieira de Melo, e à empresária Fátima Regina de Souza Campos, diretora-geral das Organizações Jaime Câmara, a maior rede de comunicação do Estado, além da promotora Beatriz Regina Lima de Melo e do então procurador-geral de Justiça, José Omar de Almeida Júnior. “Numa tacada só, o governador garantiu o quinhão da família, favoreceu a imprensa local e o Ministério Público”, avalia o advogado Antonio Edimar Serpa Benício, autor de uma ação popular que pede a anulação daquele decreto. Ele conta que havia comprado um lote na área conhecida como Fazenda das Palmas, perto do córrego Jaú – um dos principais da capital. “Como tantas outras famílias, nós tínhamos um documento de posse e esperávamos a regularização, já que se tratava de uma propriedade privada. Mas o governo veio e tomou tudo na marra”, lembra Benício.
A Fazenda Palmas estava em nome da agropecuária do Grupo Umuarama, que tinha entre seus sócios o secretário de Infraestrutura do Estado, Rubens Vieira Guerra. Na ação de desapropriação, o governo prometeu pagar à agropecuária pouco mais de R$ 17 mil. Mas a ação popular movida por Benício travou o processo que aguarda julgamento de um recurso no STJ. Guerra, no entanto, não ficou no prejuízo. Em 2001, já no terceiro mandato, Siqueira Campos entregou todas as terras do Estado para serem comercializadas pela Orla Participações e Investimentos S/A, criada por ele em parceria com 25 empresas, entre imobiliárias e empreiteiras, e um sindicato. Entre os sócios da Orla está a Umuarama. Outra integrante da holding é a Araguaia Construtora, do tucano Ataídes Oliveira, que assumiu a cadeira deixada pelo senador João Ribeiro (PR). Pelo contrato celebrado entre Siqueira e os empresários – e que durou até fevereiro passado –, a Orla passou a embolsar 40% de todos os negócios com terras públicas, uma margem de corretagem só vista no Tocantins.
Para o promotor de Justiça Adriano Neves os negócios de Siqueira Campos tem todos os elementos de crime. “Há indícios de direcionamento, pois nada justifica o repasse de terras públicas à primeira-dama ou a secretários e outras autoridades”, afirma. O promotor lembra que na data das licenças já estava em vigor a Lei 8.666, que determina oferta pública da área por meio de leilão e outras modalidades de licitação. Há dois anos, Neves assumiu a área de Patrimônio Público do MPE e passou a denunciar os esquemas de grilagem. Até agora, o promotor levantou 700 casos só na área urbana da capital. Há poucos dias, no entanto, ele recebeu um levantamento do advogado Eder Barbosa de Souza, especializado em causas fundiárias: uma lista com 20 mil lotes frutos de grilagem de terras públicas. “É tanta grilagem que eu tive que me concentrar nos casos mais recentes. Até porque o crime de improbidade pública prescreve em cinco anos”, explica.
Por enquanto, o promotor tem se dedicado a levantar os negócios da antiga Companhia de Desenvolvimento do Tocantins (Codetins). Em breve, vai dar andamento aos casos do Intertins. A tarefa é hercúlea. Basta saber que Siqueira Campos entregou o Cartório de Registro de Imóveis do Estado ao sobrinho Israel Siqueira de Abreu Campos. Com plenos poderes, o governador conseguiu transferir a titularidade e anular títulos concedidos pelo Incra. Em 1991, por exemplo, o Estado repassou a preço simbólico uma chácara de 144 hectares a José Ribeiro da Silva, conhecido vaqueiro de Siqueira Campos. Dois anos mais tarde, a propriedade foi transferida para a aposentada Aureny Siqueira Campos, a primeira mulher do governador. Em 2002, o casal cedeu a área em comodato à Investco S/A, cessionária da hidrelétrica de Lageado. Com o divórcio quatro meses depois, Siqueira ficou com a chácara e, em 2004, a revendeu para a própria Orla Participações, por R$ 2,4 milhões. Mesmo com tantos negócios, o governador declarou à Justiça Eleitoral um patrimônio de pouco mais de R$ 400 mil. Muito pouco para quem parece ser dono de todo o Tocantins.