domingo, 4 de setembro de 2011


Na ode ao consumo da violência escondida sob a capa de esporte, um retrato nítido da sociedade em que vivemos.


    
Ao escrever em 1974 o livro “O Mito do Desenvolvimento Econômico”, o economista Celso Furtado teve a coragem de antecipar várias discussões sobre a impossibilidade de que o modelo econômico vigente nos países ricos pudesse ser adotado com sucesso em todas as partes do mundo.  Pelo contrário, Celso Furtado colocava essa noção no plano mitológico, visto que para ele não haveria condições sociais e ambientais para tal adoção nos países da periferia do capitalismo.  Isto, contudo, não impediria que nos países periféricos as elites adotassem as formas de consumo disseminadas a partir dos países centrais, num esforço de mimetizar modos e costumes que lhes garantiria um ar de modernidade. Já para a maioria pobre, Furtado antecipava um aprofundamento da miséria e da exploração. 

    Passados sete anos desde sua morte, as idéias de Furtado parecem cada vez mais válidas, e evidências surgem por todos os lados para mostrar que as elites brasileiras se contentaram em imitar o modo de vida consumista e alienado que impulsiona seus congêneres nos países desenvolvidos. A pista para isto já havia sido dada com a multiplicação de programas de reality show tipo o Big Brother Brasil, onde o elogio às piores deformidades morais produzidas pelo gênero humano aparece na forma de prêmios milionários, servindo ainda para que brotem para a mídia sensacionalista novas estrelas de brilho efêmero.  Mas a recente edição do chamado Ultimate Fighting Championship (UFC) na cidade do Rio de Janeiro me pareceu ser a confirmação suprema das previsões de Celso Furtado.  Isto apareceu nos pronunciamentos feitos por pseudo-celebridades, milionários, políticos, ex-jogadores de futebol e artistas de TV presentes no evento, uma salada mista de famosos formada por figurinhas conhecidas como Eike Batista, Sérgio Cabral, Eduardo Paes, Aécio Neves e Luciano Huck.

     Pior que o besteirol proferido  pelas celebridades entrevistadas durante o evento, só mesmo a sequência de confrontos entre os empregados do norte-americano Dana White que, sob a capa de atletas, se alternaram em bater em adversários semi-desfalecidos, mas que ainda tinham tempo de proferir verdadeiras odes a si mesmos. Mais longe ainda foi Anderson Silva, quando após surrar o adversário Yushin Okami citou o “Capitão Nascimento”, o truculento mocinho do filme Tropa de Elite. O fato de que um oficial do BOPE também participou de um dos confrontos já denunciava esta conexão entre a tropa de elite do Capítão Nascimento e os empregados de Dana White. Aliás, será que alguém pensaria numa síntese melhor? Por nos ringues da UFC um símbolo da violência que assombra diariamente as comunidades pobres da cidade do Rio de Janeiro.

     Entretanto, outro evento aparentemente desconexo, ocorrido no mesmo dia e na mesma cidade, mostrou como a realização do UFC é algo que exemplifica os efeitos dantescos da adoção dos enlatados por uma elite alienada. Após anos de descaso, um dos bondinhos que servem à comunidade e aos turistas que freqüentam o lúdico bairro de Santa Teresa descarrilou, matando cinco pessoas e ferindo mais de cinqüenta.  As primeiras análises do veículo acidentado mostraram que o sistema de frenagem estava preso apenas por um arame, em vez dos requeridos parafusos.  O único representante do governo estadual que se dignou a comparecer a Santa Teresa, o secretário estadual de Transportes Júlio Lopes, foi recebido debaixo de vaias e sob um coro de ofensas por parte dos normalmente pacatos moradores do bairro.  Como era de se esperar, Júlio Lopes apresentou explicações que não convenceram ninguém, e prometeu finalmente fazer o que já deveria estar sendo feito há muito tempo.
       Mas qual seria o nexo que tento estabelecer entre o que um dos meus ex-orientandos chamou de “rodeio de seres humanos” e a tragédia de Santa Teresa? É que conhecendo um pouco o país de origem do proprietário do UFC, uma incidente como este não apenas teria uma repercussão muito maior do que teve, mas provavelmente o evento seria transferido para outra data. É que lá no centro difusor do produto consumido pelos ávidos fãs brasileiros, há ainda uma certa etiqueta que desencoraja as demonstrações explicitas de frivolidades em meio a tragédias. 

       Neste contexto marcado pela ode à violência, mesmo que mascarada por holofotes e câmeras de TV, o mais preocupante é que a falta de sensibilidade das elites brasileiras não se restringe apenas à realização de eventos comerciais em dia de tragédia.  Ela está presente na relações sociais cotidianas, e as aparentes disputas de modelos de governar ficam apenas na aparência, pois em sua  essência os participantes são todos farinha do mesmo saco.  E o que se esperar de uma sociedade que naturaliza, e até mesmo idolatra a violência, senão mais violência?  Assim, que ninguém se surpreenda se no vácuo da realização do UFC não tivermos mais ataques a homossexuais e empregadas domésticas confundidas com prostitutas por parte dos jovens que consomem o que é ali comercializado: a violência em sua forma mais pura e profunda.  Afinal de contas, ninguém é ingênuo a ponto de pensar de que a mensagem disseminada por este tipo de produto se encerra quando os holofotes se apagam. E vida longa ao Capitão Nascimento!