Em tempos de hegemonia capitalista, nem a Ciência escapa da manipulação em nome do lucro
Uma das verdades mais absolutas que guiam o mundo moderno é a de que a Ciência, e por extensão os cientistas, representa um estágio superior na racionalidade humana. Nesta toada, a maioria das pessoas é levada a acreditar que não existe nada que não seja possível de ser obtido a partir da aplicação do método científico a uma determinada necessidade. Mesmo os mais fervorosos crentes na existência em Deus hoje depositam extrema fé na capacidade da Ciência em resolver problemas que até recentemente seriam solucionados apenas por milagres. Mas não existe nada mais anticientífico do que este tipo de idolatria da Ciência e dos cientistas. Afinal de contas, quando pioneiros como Galileu Galilei e Nicolau Copérnico desafiaram as noções teocêntricas para nos abrir as portas de uma diferente forma de conhecer o mundo, é muito provável que o faziam justamente para retirar a certeza dada pelo pensamento tomista, visando introduzir a dúvida na mente humana de modo a capacitá-la a questionar e inovar.
Da mesma forma, a tecnologia (um dos subprodutos do avanço científico) também ganhou ares de infalibilidade. Em função disto, aquela porção da Humanidade que pode consumir os últimos produtos gerados pela tecnologia se comporta de forma cada vez mais alienada das conseqüências de seu modo de vida. Como se estivéssemos numa nova Idade da Pedra da consciência humana, agora todas as necessidades humanas estariam sendo resolvidas pela tecnologia. Em contrapartida, aqueles que se aventuram a questionar os custos e os riscos do avanço da tecnologia sobre a vida humana são tachados como retrógados e anticientíficos, e pintados como inimigos da modernidade e que, portanto, devem ser combatidos e ostracizados. Ora, não há nada mais retrógrado do que postular tal dominância da Ciência e da tecnologia no oferecimento das respostas que a maioria da Humanidade busca para solucionar questões básicas como o acesso aos alimentos e à água. E por quê? A resposta é simples: os problemas existentes não são de natureza cientifica ou, tampouco, tecnológica. Na verdade, a maioria dos obstáculos a uma existência mais justa e digna para esta maioria está no campo político e econômico.
Por que então essa insistência em rotular os eventuais questionamentos sobre a tentativa de tornar a Ciência uma panacéia para todos os males humanos como retrógrados e anticientíficos? A resposta para isto está, evidentemente, no alinhamento político e econômico daqueles que se insurgem contra os questionadores da racionalidade que rege atualmente o status quo capitalista. Um exemplo disto foi a recente aprovação, em completa surdina pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), de uma variedade de feijão transgênico resistente a um vírus que vem devastando os plantios da variedade “Carioquinha”, hoje a mais consumida no Brasil. Essa aprovação aconteceu sob os protestos de cientistas independentes, organizações camponesas e ambientalistas, e inclusive do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar brasileiro. As razões da oposição? Entre outras, a falta de estudos aprofundados sobre o efeito do consumo desta variedade transgênica sobre a saúde humana. Mas a principal delas atém-se ao fato de que as espécies transgênicas possuem capacidade intrínseca de contaminar plantios tradicionais causando, assim, o risco de que venhamos num futuro não muito distante a dependermos de uma única variedade de feijão. Os riscos que isto acarreta são muito graves, pois os criadores desta semente, pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), não conseguiram demonstrar que esta variedade transgênica terá a capacidade de permanecer resistente a infecções virais por um longo período de tempo.
Um problema ainda mais grave é que a maioria das variedades transgênicas é manipulada para se tornarem mais robustas contra o ataque de doenças e pragas a partir do uso de agrotóxicos. Em outras palavras, há uma associação íntima entre os criadores de sementes transgênicas e os fabricantes de agrotóxicos. Um exemplo maior disto é a Soja Roundup Ready (pronta para receber aplicações do agrotóxico Roundup WG), que fabrica a semente e o agrotóxico. Assim, o que se vê não é uma busca obstinada em garantir o feijão ou a soja de cada dia, mas uma gana de aumentar os lucros das corporações produtoras de sementes e venenos agrícolas. Apesar de evidências cientificas sobre as conseqüências da contaminação transgênica em uma série de culturas essenciais à dieta humana ainda estarem sendo coletadas, já está ficando claro que a criação e aplicação desta tecnologia não vêm significando o milagre que seus defensores insistem em lhe atribuir.
O mais grave nisto tudo é que existe um grande esforço de marketing para nos manter paralisados frente ao avanço deste tipo de tecnologia em uma área tão estratégica da nossa existência como a alimentação. No caso brasileiro, a CTNBio é composta por somente 15 pessoas, que possuem o poder impressionante de decidir o que acontecerá à alimentação diária de quase 200 milhões de pessoas. Neste sentido, é necessário urgentemente questionar não apenas a composição desta comissão, mas também os mecanismos usados para determinar quem vai ter assento ali ou não. Do contrário, é quase certo que os interesses das corporações econômicas continuarão vindo primeiro do que nossa busca por segurança alimentar.