Pressionado pelos ruralistas, com receio de perder um novo embate após o Código Florestal, governo, apesar do PT, não estabelece como prioridade votação do projeto que expropria as terras de quem é acusado de escravidão
O receio de um novo embate com a bancada ruralista, menos de um mês após a derrota na aprovação do novo Código Florestal na Câmara, faz o governo resistir aos apelos de deputados do partido da presidenta Dilma Rousseff (PT) para retomar a votação da PEC do Trabalho Escravo. Há quase sete anos no plenário da Casa, a proposta de emenda constitucional que prevê a expropriação de terra onde for constatado trabalho escravo deve seguir engavetada. Além da preocupação do governo, a proposição esbarra na resistência dos líderes partidários e do próprio presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), de incluí-la novamente na pauta.
Marco Maia decidiu que só vai submeter a votação em plenário propostas de emenda constitucional que tenham consenso entre os partidos, o que está longe de ocorrer com a PEC do Trabalho Escravo, bombardeada por deputados ligados ao agronegócio. Há dois meses, a presidência da Câmara também segura a instalação da CPI do Trabalho Escravo, requerida por um colega de partido, o também petista Cláudio Puty (PA). O início dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito ainda depende do aval de Maia.
“Se não pautarmos imediatamente a PEC, vamos usar a CPI do Trabalho Escravo para pressionar. Queremos a instalação da CPI para que ela possa servir como instrumento de esclarecimento e mobilização pública sobre a necessidade de aprovar a PEC”, defende Cláudio Puty, presidente da Comissão de Finanças e Tributação. Ontem (14) ele e Domingos Dutra (PT-MA), vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos, propuseram a Marco Maia que paute imediatamente a PEC do Trabalho Escravo. A sugestão foi feita durante reunião do presidente da Câmara com os presidentes das comissões. O petista gaúcho, no entanto, não deu nenhuma resposta.
Os ruralistas, que impuseram a primeira grande derrota à presidenta Dilma na votação do Código Florestal, contestam a configuração do trabalho escravo e reclamam do confisco de terra, considerado por eles uma medida excessiva contra o produtor rural flagrado mantendo trabalhadores em condições degradantes e jornada exaustiva. Como mostrou o Congresso em Foco, três parlamentares respondem no Supremo Tribunal Federal pelo crime de trabalho escravo.
“Circo” e “coisa do capeta”
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado Moreira Mendes (PPS-RO), diz que a bancada não admite a possibilidade de se retomar a votação da PEC do Trabalho Escravo, aprovada pelos deputados em primeiro turno no dia 11 de março de 2004. O texto, já aprovado pelo Senado, aguarda desde então deliberação em segundo turno na Câmara.
O deputado rondoniense vai além: ele diz não acreditar na existência de trabalho escravo no Brasil contemporâneo. Segundo ele, os flagrantes feitos pelo Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, responsável pelo resgate de 32.986 trabalhadores em condições análogas à de escravo entre 2003 e 2010, são obra de quem quer “fazer escândalo e aparecer no Jornal Nacional”.
“Está mais para circo, porque não acredito que exista trabalho escravo. As fiscalizações são abusivas. A ‘lista suja’, então, é um horror, lembra a ditadura, o proprietário fica discriminado sem ter direito a defesa, o nome dele está lá e ele não pode falar nada. Tem de esperar anos para que a Justiça decida alguma coisa. Há uma discriminação grande. Quando se fala em produtor, parece coisa do capeta. Essa visão maniqueísta de que o produtor é do mal e o pessoal do meio ambiente é do bem tem de acabar”, critica o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária.
Divulgada pelo Ministério do Trabalho, a “lista suja” à qual o deputado se refere é atualizada a cada semestre. São incluídos na lista empregadores cujos autos de infração não estão mais sujeitos a recursos. Salvo decisão da Justiça, os nomes ali permanecem pelo período mínimo de dois anos. Nesse período, eles ficam proibidos de receber financiamentos públicos e enfrentam boicote das empresas que assinam o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Moreira Mendes diz que o artigo 149 do Código Penal não é claro ao definir o que é trabalho escravo. “Se for pego na moita do café para urinar, é trabalho escravo, porque tem de ter banheiro químico. Se vai comer debaixo da mangueira - eu mesmo cansei de fazer isso - é trabalho escravo. Tem de ter restaurante. É uma coisa descabida, desproporcional, sem razoabilidade”, critica.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal, comete crime de trabalho escravo quem “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
“Muito rígida”
Para o deputado, a PEC do Trabalho é severa com o produtor rural flagrado explorando trabalhadores. “A PEC é muito rígida, porque promove uma expropriação sumária de terra. Precisamos ter a possibilidade de contraponto, da ampla defesa. O texto deveria pelo menos remeter a uma regulamentação por projeto de lei. Aí, o Congresso poderia dizer o que é o trabalho escravo, como se processa a expropriação. Da forma que está, isso vira uma ditadura na mão de quem está com a caneta”, afirma Moreira Mendes.
Segundo ele, os ruralistas até se dispõem a discutir o assunto, mas ao modo deles. O deputado afirma que pretende incluir a questão do trabalho escravo sob outra ótica numa “agenda propositiva” que sua frente parlamentar vai lançar em breve com as prioridades legislativas do agronegócio. “Precisamos começar a discutir a legislação trabalhista para o campo, garantindo direitos consagrados ao trabalhador, mas com regras diferentes. Quem trabalha na cidade é uma coisa, no campo é outra”, diz.
“Cabeça de 200 anos”
Autor do requerimento de instalação da CPI do Trabalho Escravo, Cláudio Puty diz que o país não pode ficar refém dos “interesses mais arcaicos da sociedade” verbalizados, segundo ele, por Moreira Mendes. O discurso dos ruralistas, afirma o petista paraense, mostra o grande paradoxo do setor produtivo.
“Vejo com assombro termos setores tão modernos tecnologicamente mas com cabeça de 200 anos atrás. Não dá para pegar eventuais exageros para evitar cuidar do caso concreto. Isso seria culpar o termômetro pela febre”, observa. “Esse argumento, então, serviria para acabar com todas as fiscalizações no país. Qualquer tipo de fiscalização e auditoria está sujeita a excesso, e isso não a torna irrelevante. Não podemos usar erros eventuais para justificar a condescendência com essa monstruosidade”, acrescenta.
Para o deputado, alegar que a PEC do Trabalho Escravo promoverá uma “expropriação sumária de terra”, como diz Moreira Mendes, é desconhecer a realidade do país. “Claro que tem direito a contraditório, temos jurisprudência que já dá direito ao contraditório, as punições só são aplicadas quando transitadas em julgado (ou seja, quando não cabe mais recurso). Mas onde o trabalhador vive em condições degradantes, não dá para esperar. Tenho certeza de que os auditores fiscais são os primeiros a não quererem cometer injustiças. Isso enfraqueceria o trabalho deles”, destaca o presidente da Comissão de Finanças e Tributação. “Não há por que temer injustiças”, emenda.
Ninguém na cadeia
Na avaliação dele, o fato de não haver ninguém cumprindo pena no Brasil por trabalho escravo é um indicativo de que o rigor não é excessivo no Brasil. “Se ninguém vai preso por evasão fiscal neste país, que pelo menos a gente consiga punir quem explora trabalho escravo”, diz Cláudio Puty. Como mostrou o Congresso em Foco no ano passado, quase metade dos empregadores flagrados pelo Ministério do Trabalho entre 2003 e 2007 não responde pelo crime na Justiça. Ninguém cumpria pena pelo crime no país.
O deputado afirma que a CPI será útil mesmo que a Câmara aprove antes a PEC do Trabalho Escravo. A comissão parlamentar de inquérito poderia se debruçar sobre as causas que levam à exploração de mão-de-obra e a necessidade de reforçar a fiscalização em todo o país. "É bastante saudável, para a agenda legislativa e para o processo de crescimento de nosso país, revelar, investigar, evidenciar os abusos ocorridos nas relações produtivas; a proteção às vítimas e a devida repercussão patrimonial necessária como medida de responsabilização dos infratores. Viver com essa realidade é incompatível com o processo de desenvolvimento alcançado no Brasil neste Século XXI. Daí a relevância da iniciativa como a presente, articulada com os trabalhos e instâncias criadas para a fiscalização dos que exploram a força de trabalho das pessoas no regime análogo ao escravo", sustenta o deputado no pedido da CPI.
Procurada pelo Congresso em Foco, a assessoria de Marco Maia informou que ele ainda aguarda pelo envio do requerimento de criação da CPI do Trabalho Escravo pela Secretaria-Geral da Mesa. Lá a informação é de que as assinaturas exigidas já foram conferidas (foi registrado o apoio de 179 deputados; o mínimo necessário era de 171) e que o pedido está nas mãos do secretário-geral, Sérgio Sampaio, e que o requerimento será enviado em breve ao presidente da Câmara. Ontem Marco Maia confirmou a instalação da CPI dos Pardais, que tem como objetivo apurar irregularidades no sistema eletrônico de fiscalização de trânsito.