domingo, 9 de outubro de 2011

Os riscos de se enxergar o mundo como uma paróquia

 Marcos A. Pedlowski, publicado no número 216 da Revista Somos Assim


    Uma das maiores armadilhas experimentadas por aqueles que procuram entender as razões de determinados eventos é deixar que a visão paroquial do mundo controle seu esforço analítico. Neste sentido, não há como entender os acontecimentos das últimas semanas em Campos dos Goytacazes, onde a cadeira de prefeito foi literalmente disputada a tapa em meio à mimetizações de uma verdadeira revolta popular, sem que vislumbremos os conflitos maiores que ocorrem no plano regional e nacional, seja no plano econômico ou no político.  Analisemos, como exemplo, a questão da política de distribuição dos royalties do petróleo, pois a suposta disputa desleal entre estados produtores e não-produtores somente camufla o fato de que o governo federal prepara um aprofundamento da política de privatização do pré-sal. Então, aquilo que aparece apenas como um tratamento mesquinho do usufruto das riquezas geradas pelo petróleo, esconde a diminuição ainda maior da soberania nacional sobre sua exploração e comercialização. 

    Na mesma toada, o tratamento paroquial da realidade pode nos levar a tropeços ainda maiores no que se refere ao entendimento do que acontece para além do plano imediato de nossas existências.  Assim,  perceber que a dissimulação do que se passa no resto do mundo não é acidental, mas decorre de um esforço diligente e incansável por parte das elites econômicas e de seus aliados, inclusive na grande mídia, é essencial à nossa intervenção social consistente. O fato é que se quisermos entender e intervir no que realmente está acontecendo à nossa volta, precisaremos evitar as manchetes e procurar pelas notas de rodapé.  Talvez seja por não praticar isto é que a imensa maioria dos brasileiros não saiba que nosso país deverá alcançar um recorde no pagamento de juros da dívida pública, algo em torno de 200 bilhões de reais ao final de 2011. E quem receberá esta dinheirama toda? Os bancos, claro. E quem seriam os maiores prejudicados em termos de investimentos públicos para bancar esta sangria toda? Ora, as vítimas costumeiras, os pobres, que ficarão ainda mais sem acesso à saúde, educação e habitação. O governo Dilma, no seu esforço de mimetização da realidade poderá pintar uma situação rósea, salientando que a diminuição dos investimentos públicos aumentará o superávit primário, o que deverá melhorar a nota do Brasil pela agência Standards and Poors. Pouco se importando, inclusive, com o fato de que a maioria dos países não use mais o superávit primário para medir a saúde das suas finanças. E se importando menos ainda se a aplicação deste conceito em nosso país esteja aumentando ainda mais a miséria, em que pese a propaganda oficial dizer exatamente o contrário.

     Se servir de consolo, o esforço em impor uma visão de mundo como uma paróquia a ser dominada por interesses locais não se reduz ao Brasil, ainda que por vezes passe por uma inversão de perspectivas. Se observarmos o que anda sendo noticiado nos grandes jornais internacionais, a necessidade de buscar o que é realmente significativo nas notas de rodapé também ocorre.  Assim, na sombra das manchetes de jornais, como do norte-americano “The New York Times” e do britânico “The Guardian”, que alardeavam o assassinato de um clérigo muçulmano radical de origem norte-americana no Iêmen para júbilo de Barack Obama, estava a notícia  de que nas ruas de Nova York uma multidão protestava contra o apoio financeiro que seu governo tem dado às instituições financeiras. O que mais agravou a fúria dos manifestantes foi o fato de que enquanto o governo Obama introduz bilhões de dólares em instituições em uma crise que decorre da sua especulação nas bolsas, milhões de cidadãos comuns estão sendo retirados de suas casas por não poderem pagar as hipotecas, bem como as taxas de desemprego alcançam níveis estratosféricos.

     Mas na continuidade da crise, iniciada em 2008, e nos seus efeitos sobre as economias dos países ricos, é que talvez resida a principal explicação desse esforço todo em reduzir os fatos políticos apenas a interesses pessoais e privados.  Me parece que a última coisa que as elites desejam é que as pessoas comuns liguem os pontos e comecem a notar que estamos todos inevitavelmente interligados, e que as soluções para nossos problemas são inalcançáveis no plano da paróquia.  De quebra, determinadas figuras que se movem melhor no plano político local devem temer que, ao perceber isto, mesmo o mais inocente de seus seguidores entenderá a dispensabilidade de sua presença.

    Querendo ou não os que lançaram o capitalismo na atual fase de extrema artificialidade em que estamos imersos, parece inevitável que os movimentos de protesto que estão ocorrendo em escala nacional acabem desembocando em algum tipo de articulação internacional, como já ocorre nos meios virtuais em menor, mas não menos provocativa dimensão.  Se isto se confirmar, e ocorrer uma unificação das ações contra as instituições financeiras e políticas que hoje controlam a economia mundial, é muito provável que acabemos descobrindo que o mundo não passa realmente de uma grande paróquia, onde estamos todos em comunhão.  Resta saber o que vai acontecer depois disto.